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estudos bíblicos

A “tese” paulina na carta aos Romanos

“Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego”.

em

O texto da Carta de Paulo aos ROMANOS (doravante chamada apenas de Romanos) é, sabidamente, dividido em 2: dos capítulos 1 ao 11, temos “a parte teórica”, digamos assim. Dos capítulos 12 aos 16, a “parte prática”.

Aqui, neste breve ensaio, interessa-nos a parte 1. Não pretendemos, de forma alguma, fazer uma exposição exaustiva da primeira parte de Romanos. Muito menos fazer uma exegese comparativa das versões principais correntes, haja vista todas as implicações da Crítica Textual, que por si sós dariam um livro. Utilizaremos três versões bíblicas na língua portuguesa nesse ensaio:

  1. Revista e Corrigida 4a. Edição, presente p. ex. na “Bíblia Palavras-Chave”,
  2. Revista e Atualizada com Notas de Strong, da virtual Olive Tree Bible, que possui algumas diferenças com a última edição da RA impressa, mas nada que seja relevante; e, por fim,
  3. o Texto Bizantino, base do que conhecemos como “Textus Receptus”. O texto bizantino utilizado aqui é também da Olive Tree Bible.

Muito, mas muito mesmo, já foi dito sobre “Romanos”, nestes dois mil anos de Cristianismo. Muitas e exaustivas análises. Aqui e acolá ouve-se falar de uma “tese” em Romanos, algo que seja a base da argumentação paulina.

Muitos porém, no nosso entendimento, enveredaram mais intensamente às partes periféricas do texto paulino em Romanos, do que nas centrais. Talvez por causa do impacto que textos como o do capítulo 3 tiveram na história ocidental da Igreja, especificamente nas vidas de Agostinho e Lutero, pense-se que a ênfase principal da parte 1 da epístola, ou seja, a tese paulina, seja “uma defesa da justificação pela fé”.

Isto não está de todo equivocado, e aqui explico o que quero dizer. Com “equivocado”, não quero dizer que há uma outra, mais importante tese em Romanos, pois entendo que a doutrina da justificação pela fé é importantíssima para o todo da carta, mas como “parte do centro”, não como o centro inteiro. Segundo, sem as devidas conexões que Paulo faz, desde o início da carta, até o fim da parte 1, o capítulo 3 fica completamente desprovido da sua importância ante o todo, pois é neste, no todo, que Paulo apresenta e extensão de sua argumentação, através da qual revela o grandioso propósito daquela literatura.

Denis Allan, em 2006, abordou o texto também defendendo uma “tese” em Romanos, a qual ele expõe no cap. 1, vs. 6: “Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego”. 

Como disse, defendo o pensamento de que Paulo tinha uma tese, mas não creio ser a apontada por Allan. Paulo escrevia suas cartas como discursos, pois elas eram lidas. Seguindo-se o plano retórico – discursivo, oral, não argumentativo ainda -, era muito importante para os antigos que tinham conhecimento da arte retórica, dispor o texto do discurso seguindo o padrão:

  • Exórdio,
  • Narração,
  • Provas,
  • Epílogo.

Paulo apresenta uma “pré-tese”, em Romanos 1:6, mas, como o assunto nestes cap. e vers. ainda fazem parte da introdução, defendo a ideia de que ele apresenta uma tese mais adiante, depois de ter exposto o problema UNIVERSAL do pecado, originalmente, e da providência salvífica de Deus, com abrangência não menor do que UNIVERSAL também. Contudo, no discurso antigo, é na narração, ou exposição dos fatos, que se apresenta uma tese num discurso antigo, e é no mesmo âmbito que se formam os argumentos para se defender tal tese.

Foi isso o que fez o apóstolo dos gentios, quando elencou um “homem” (“judeu opositor”, pois os judeus romanos são o destinatário principal da carta), com quem “combaterá” discursivamente (agora sim, argumentativamente) por toda a primeira parte (cf. 2:1-2). E, por que o “judeu” também estaria na mesma condição que o “grego”? Porque ambos são pecadores. O termo “grego”, no nosso entendimento, personifica na carta a totalidade dos não-judeus ou gentios. Paulo termina, portanto, o Exórdio (Introdução) com a seguintes palavras:

Se, porém, tu, que tens por sobrenome judeu, e repousas na lei, e te glorias em Deus; que conheces a sua vontade e aprovas as coisas excelentes, sendo instruído na lei; que estás persuadido de que és guia dos cegos, luz dos que se encontram em trevas, instrutor de ignorantes, mestre de crianças, tendo na lei a forma da sabedoria e da verdade; tu, pois, que ensinas a outrem, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas? Dizes que não se deve cometer adultério e o cometes? Abominas os ídolos e lhes roubas os templos? Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei? Pois, como está escrito, o nome de Deus é blasfemado entre os gentios por vossa causa. Porque a circuncisão tem valor se praticares a lei; se és, porém, transgressor da lei, a tua circuncisão já se tornou incircuncisão. Se, pois, a incircuncisão observa os preceitos da lei, não será ela, porventura, considerada como circuncisão? E, se aquele que é incircunciso por natureza cumpre a lei, certamente, ele te julgará a ti, que, não obstante a letra e a circuncisão, és transgressor da lei“, Rm. 2:17-27.

É com essa cadeia de argumentos que Paulo desemboca na sua TESE, a partir da qual construirá toda a série de Narração e Provas presentes na parte 1 da Carta (lembrando que a parte 1, como dissemos, vai do cap. 1 ao 11). Outrossim, esta é a…

A Tese de Paulo em Romanos

Porque não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é somente na carne. Porém judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão, a que é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus“, Rm. 2:28-29.

O contraponto que ele faz em 3:1 e 3:9 não é muito bem compreendido, talvez, porque as traduções trazem a palavra “vantagem”, em ambos os casos, com diferentes sentidos no grego. Em 3:1 (“Qual a ´vantagem´ do judeu?”) há esta pergunta, cuja resposta é “muita, sob todos os aspectos”. Mas, em 3:9, (“Que se conclui: temos nós qualquer ´vantagem´?”), a reposta é outra: “De jeito nenhum!”.

É óbvio, portanto, que Paulo não está utilizando a mesma expressão ou ideia. No segundo caso, Paulo refere-se ao judeu como raça e, aí, obviamente que não somente ao nível de povo, mas de indivíduos. Nada há de especial acerca dos judeus, pois “todos, tanto judeus quanto gregos, estão debaixo do pecado” (3:9b). Como defendo que a argumentação paulina também é essencialmente missiológica, o “resgate” do Homem pela obra expiatória de Jesus tomará cada vez mais vulto e, na verdade, será praticamente o principal ponto em várias das cartas do apóstolo dos gentios.

Muita atenção se dá aos textos de Romanos 3:23 e 28. De fato, são textos cruciais, mas só fazem sentido pleno ante a argumentação no todo. A ideia de que a fé é um ato superior à observância da Lei fica clara por sua consequência direta, ou seja, a pergunta retórica que Paulo faz, em Rm. 3:9: “É, porventura, Deus somente dos judeus? Não o é também dos gentios? Sim, também dos gentios” (Rm. 3:29a). Para reforçar a “ligação” do que diz, Paulo vale-se da pessoa de Abraão, talvez (fisicamente) o homem mais respeitado na cosmovisão judaica por ter sido o “pai” daquela nação. E, ligar Abraão a um “gentio” não é apenas um sinal de ousadia literária, mas sobretudo de brilhantismo (e aí entra o fator inspiração!).

A argumentação de Paulo é clara e inequívoca: Abraão foi “justificado” ANTES da Lei, aliás, ANTES mesmo da circuncisão (4:10). Portanto, o uso de Abraão como exemplo de um “incircunciso justificado por Deus” é forte argumento para a aplicação de que é “pela fé que somos justificados”, o que o apóstolo expressara (em 3:28).

Até este ponto, não digo nada que já não tenha sido exaustivamente discutido por séculos. Esta explicação visa, contudo, trazer a você, que lê este breve ensaio, os porquês de afirmarmos, no início, que a TESE de Paulo encontra-se em 2:28-29. Toda a argumentação paulina em Romanos redunda nesta ideia, além de servir de edifício argumentativo através do qual ele explicará a lógica da tese. Ao continuar sua argumentação, Paulo passa (cap. 5) a fazer uma comparação entre Adão e Jesus.

Primeiro, ele provém da ideia de que todos pecaram: “Entretanto, reinou a morte desde Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram à semelhança da transgressão de Adão, o qual prefigurava aquele que havia de vir”. Uma coisa é certa, portanto: TODOS estão debaixo do pecado e de suas consequências.

Adão, Jesus e a raça humana

Romanos 5:12-21 é um trecho importante nesta epístola. Nele, Paulo explica porque “todos pecaram”: “Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (vs. 12). Paulo já havia afirmado isto em 3:23. A questão lógica desta argumentação é relativamente simples de se destacar: por UM homem entrou o pecado no mundo (isto é, Adão), e por UM homem ele foi vencido (isto é, Jesus). Contudo, o trabalho salvífico de Jesus Cristo é superior, uma vez que vivificar é superior a mortificar. Adão trouxe morte, Cristo trouxe vida. Nesta condição, não há diferença alguma entre judeus e não-judeus, pois todos estão sob o pecado. O texto chave, porém, dessa passagem é a seguinte proposição paulina:

Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida” (5:18).

O princípio é evidente: RESTAURAR o equilíbrio. Não há a mínima dúvida de que a expressão “todos os homens…”, em ambas as partes sublinhadas, mostra a natureza da expiação de Cristo ante o prejuízo do pecado de Adão. Paulo não está defendendo qualquer tipo de “universalismo” (salvação para todos, incondicionalmente), mas falando da abrangência dos atos do “tipo” (pré-figura do AT que representa uma figura no NT), que seria Adão e o pecado, com o “antitipo”, isto é, aquele que é representado por Jesus. O fato crucial é que o salvação é, segundo a Escritura, oferecida a todos, pois todos fomos encerrados sob o poder do pecado.

Este resultado é explicado por todo o capítulo 6, que consiste, inclusive, de numerosas exortações morais e espirituais acerca da importância da manutenção de uma vida de santidade e abandono das paixões efêmeras do mundo.

E em 7:6, diz: “Agora, porém, libertados da lei, estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos, de modo que servimos em novidade de espírito e não na caducidade da letra. Calvinistas gostam de usar Efésios 2:8-9 para afirmarem que “estávamos mortos em delitos e pecados”, e nesta condição, “não temos como exercer o arbítrio”. Mas, esta é mais uma prova de que “morto”, nestes casos, é uma palavra figurada. O “morto” ao qual Paulo se refere é a condição de “separado”, como sinônimo de “imundo”, “pecador”, “concupiscente”. Esta condição, para o salvo, é impossível e, portanto, o mesmo deve estar “morto para o pecado”. Não significa que não tenha condições de pecar, mas que sua condição espiritual é de “separação”. Vamos adiante.

A raça humana está preconizada nas palavras do Apóstolo Paulo, que ilustram bem a condição de guerra em que se encontra o homem:

Neste caso, quem faz isto já não sou eu, mas o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum, pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo. Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço. Mas, se eu faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, e sim o pecado que habita em mim. Então, ao querer fazer o bem, encontro a lei de que o mal reside em mim. Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo, nos meus membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros” (7:17-23).

A parte destacada no texto acima é motivo de controvérsia. Alguns defendem que Paulo fez um relato, a partir de si, da condição do homem natural (e.g., um judeu não convertido ao Cristianismo). Outros defendem que aquela condição é ilustrativa, sim, mas refere-se exclusivamente aos que já professaram a Cristo, que ainda assim lutam contra a pecaminosidade. Bem, o fato é que Paulo nos fala de uma “luta”, uma guerra que há entre a “lei da mente” – lit. “tô nomô tou noós mou“, gr. transl. – “contra a lei da minha mente”. Será sua consciência? Talvez seja essa a tradução mais aproximada de “noós” ou “nous”, de onde vem a palavra “metanóia” (“arrependimento”). Seja como for, Paulo já havia dito, na mesma Carta, que Deus imprimira sua “lei” nos “corações” dos homens:

Quando, pois, os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se” (2:14-15).

Aquela dualidade, sobra a qual falamos, é base para a argumentação secundária de Paulo, na qual ele explica (caps. 7 e 8) que o penhor da carne é nada, mas o do Espírito é vida (8:12-17). A questão sanguínea, portanto, dissolve-se ante o tremendo alcance do selo da fé. E, por que isto é tão importante para Paulo? Porque, lembramos, sua tese é:

Porque não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é somente na carne. Porém judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão, a que é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus“, Rm. 2:28-29.

E, sendo esta a sua tese, cabe ao Apóstolo demonstrar nas Escrituras que o alcance da promessa de Deus, no AT, cumpre-se no tempo da Graça de Deus e sua essência é muito maior do que imaginava o nacionalismo restritivo dos judeus. Ao invés de excluir, a promessa incluía, abarcava pessoas de quaisquer nações, povos e línguas, uma ideia que ainda era difícil de ser aceita pelos judeus nos dias de Paulo, inclusive na própria Igreja (vide At. 15). Para muitos a circuncisão era obrigatória, mesmo para os que criam em Cristo Jesus. Não só a circuncisão, mas a abstenção de certos tipos de comida, nos moldes do Levítico. Estas restrições caducaram com o “fim”, a “plenitude” da Lei, que é Cristo. Paulo afirma expressamente: “Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê” (10:4).

Romanos, caps. 8 e 9

É claro que os textos mais controversos de Romanos se encontram nos capítulos 8 e 9, por causa de algumas palavras e ideias que ali estão. Defendo, contudo, que tais capítulos, a exemplo dos capítulos 6 e 7, são parte da argumentação paulina, não seu cerne. O que Paulo defende como uma tese, nesta carta-discurso (como eram suas cartas, à exceção das “pastorais”), é o texto de 2:28-29, por cujo propósito Paulo constrói toda a argumentação que vimos. As conclusões de sua argumentação são rigorosamente dedutivas e, quando indutivas, feitas com base em uma lógica plausível, verosímil, típica da retórica-homilética de seus dias. A certeza de que somos alvo da benevolência de Deus, no cap. 8, dá-se desde o início. “Agora, pois, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (8:1). Toda a exaltação de Paulo a Deus, neste capítulo, está incutida nas palavras em que se lhe assegura a certeza, no Espírito, de estar cuidando dos seus. E é a partir da defesa desta ideia – de que Deus cuida dos seus -, que ele adentra naquela que é a parte mais “difícil” de sua carta, o final do cap. 8 e o cap. 9. Vejamos:

Também o Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós sobremaneira, com gemidos inexprimíveis. E aquele que sonda os corações sabe qual é a mente do Espírito, porque segundo a vontade de De>us é que ele intercede pelos santos. Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou” (8:26-30).

A expressão sublinhada acima é οϋς προέγνω (ous proegnô). Esta expressão também tem sido motivo de controvérsia, o que não deveria existir. Em 1 Pedro 1:2, há a expressão “segundo sua presciência” (“κατa πρόγνωσιν”), pois o substantivo é usado. O verbo, no texto de Romanos, coincide com o radical de 1 Pedro, que significa “conhecimento prévio”. Este conhecimento prévio é a BASE dos desdobramentos seguintes, não o verbo “προώρισε” (“predestinou”), o qual é um desdobramento indutivo do ato divino de salvação. Este ato de Deus se dá numa esfera atemporal, ou seja, de sua perspectiva, pois nela Deus nos  “glorificou”, ou seja, tudo para Deus já aconteceu, uma vez que, como ser infinito, não há tempo e espaço. A sequência de atos divinos que vemos em Romanos 8:28-30 é continuidade da ideia de que Deus se responsabiliza pelos seus, de que Ele sustenta, posto que o futuro dos fiéis é garantido: a vida eterna.

Deus: conheceu de antemão > predestinou > chamou > justificou > glorificou.

É esta certeza, esta segurança que está na mente do Apóstolo, pois, logo em seguida, como é de costume, Paulo pergunta (retoricamente) e afirma:

Que diremos, pois, à vista destas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas? Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós. Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Como está escrito: Por amor de ti, somos entregues à morte o dia todo, fomos considerados como ovelhas para o matadouro. Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor“. (8:31-39).

Exato! “Quem intentará acusação contra os ´eleitos´ de Deus? É Deus quem os justifica”, afirma o apóstolo. É fácil entendermos o porquê de tanta confusão sobre textos como esse: enquanto, principalmente após a Modernidade, os cristãos (principalmente os calvinistas) tendem a dar uma grande ênfase à questão da “eleição” em si, o que se percebe no texto é uma argumentação jurídica, i.e., em defesa da ideia de que “ninguém pode intentar acusação contra os eleitos de Deus”.

Sejam quais forem, quem forem, onde estiverem, de onde tenham vindo… NADA poderá separá-los do amor de Deus, que está em Jesus Cristo. Esta é a ênfase correta do texto, não o aspecto da “eleição” em si, muito menos a “eleição incondicional”, um desdobramento teológico e, ao nosso ver, equivocado do texto. Sem dúvidas Paulo fala de uma “eleição”: indubitavelmente oriunda de seu pré-conhecimento. E esta “eleição” é segura, pois, segundo o Apóstolo, já estamos glorificados com Cristo, não tendo quem nos separe de seu amor.

A questão, contudo, é: quem são os “eleitos” e como tal “eleição” se processa?

A resposta não pode advir de elucubrações humanas, pois, como vimos, as perspectivas acerca do texto podem centrar pontos periféricos, o que não é correto hermeneuticamente. É a partir daí que seguimos rumos ao próximo capítulo, talvez o mais controverso de toda a epístola. Após um lamento por causa dos israelitas (9:1-5), os quais francamente rejeitaram a mensagem salvífica de Jesus Cristo, como bem sabemos, além do que, àquela época, ainda perseguiam os apóstolos de Cristo, Paulo volta à questão que julgamos central nesta primeira parte da Carta aos Romanos: que “judeu” ou “israelita” não são os da carne, mas os da promessa, como temos enfatizado em 2:28-29. No capítulo 9, vss. 6 ao 8, Paulo escreve:

E não pensemos que a palavra de Deus haja falhado, porque nem todos os de Israel são, de fato, israelitas; nem por serem descendentes de Abraão são todos seus filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência. Isto é, estes filhos de Deus não são propriamente os da carne, mas devem ser considerados como descendência os filhos da promessa“.

Pois bem, logo em seguida, Paulo dá um exemplo que, a princípio, pode parecer-nos que queira ensinar algo como uma “eleição incondicional para a salvação”; mas, repito, isto é uma leitura errônea, que ganha peso na Modernidade, principalmente após o calvinismo. A questão é mostrar que não é por mérito dos judeus – por obras – que os mesmos são salvos, mas “por aquele que chama”, i.e., Deus. Está escrito:

Porque a palavra da promessa é esta: Por esse tempo, virei, e Sara terá um filho. E não ela somente, mas também Rebeca, ao conceber de um só, Isaque, nosso pai. E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já fora dito a ela: O mais velho será servo do mais moço. Como está escrito: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú” (9:9-13).

Duas coisas precisam ser ditas aqui: a primeira é que “o propósito quanto à eleição” não deve ser entendido para a SALVAÇÃO ESPIRITUAL, mas para o plano de Deus QUANTO ÀS NAÇÕES QUE ESAÚ E JACÓ REPRESENTAVAM. É claro que houve/haverá, entendemos assim, descendentes de Esaú que foram e/ou serão salvos espiritualmente, como descendentes de Jacó que não foram/serão salvos. Isto é claro e está de acordo com o que Paulo destaca acerca do que fora dito à Rebeca: “…O mais velho será servo do mais moço“. Isto é algo relativo às nações (israelita e induméia). A segunda diz respeito ao que vem logo a seguir. A frase “Como está escrito: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú” NÃO FOI PROFERIDA POR DEUS NO GÊNESIS, como muitos pensam, antes de ambos terem nascido, mas em Malaquias (c. de 440 a.C.), como parte de uma exortação que Deus faz aos israelitas:

“Sentença pronunciada pelo SENHOR contra Israel, por intermédio de Malaquias. Eu vos tenho amado, diz o SENHOR; mas vós dizeis: Em que nos tens amado? Não foi Esaú irmão de Jacó? — disse o SENHOR; todavia, amei a Jacó, porém aborreci a Esaú; e fiz dos seus montes uma assolação e dei a sua herança aos chacais do deserto. Se Edom diz: Fomos destruídos, porém tornaremos a edificar as ruínas, então, diz o SENHOR dos Exércitos: Eles edificarão, mas eu destruirei; e Edom será chamado Terra-De-Perversidade e Povo-Contra-Quem-O-SENHOR-Está-Irado-Para-Sempre. Os vossos olhos o verão, e vós direis: Grande é o SENHOR também fora dos limites de Israel.

O filho honra o pai, e o servo, ao seu senhor. Se eu sou pai, onde está a minha honra? E, se eu sou senhor, onde está o respeito para comigo? — diz o SENHOR dos Exércitos a vós outros, ó sacerdotes que desprezais o meu nome. Vós dizeis: Em que desprezamos nós o teu nome?” (Ml. 1:1-6).

Como um pai que protege seus filhos, Deus “aborrecera a Esaú”, i.e., os indumeus ou edomitas, por causa de sua obsessão pela ruína de Israel, suas atrocidades com os israelitas e toda a crueldade com que trataram os judeus. Como um pai que ama, Deus amou seu “filho”, Israel, protegendo-o do irmão, Esaú, que além de idólatra e perverso (falo do povo, não da pessoa), era inimigo de Israel. O uso metonímico (o todo pela parte), ou seja, os edomitas e israelenses sendo retratados por “Esaú” e “Jacó”, respectivamente, é um recurso por demais utilizado nas páginas do AT. Mas, apesar de Deus proteger e guardar seu “filho” – a nação de Israel -, esta continuava “ingrata”, com os homens desrespeitando preceitos da Lei, desprezando o próprio Deus e mais: sem reconhecerem que continuamente faziam o que era mal.

Neste ponto, Paulo pergunta: “Que diremos pois? Há injustiça da parte de Deus? De modo nenhum!” (9:14). Os judeus, ou quem quer seja, poderiam pensar que estava havendo alguma injustiça da parte de Deus em meio àquele ato arbitrário. Mas, de fato, Deus compadece-se de quem quer, como está escrito (9:15). E é a partir daí que entramos na seção mais obscura de Romanos, a qual, se lida isoladamente, pode produzir um enorme efeito contrário àquele que se nos é produzido quando a lemos levando em consideração o contexto geral da parte 1 (caps. 1-11). Paulo levanta um hipótese em seu discurso escrito. Vejamos:

Tu, porém, me dirás: De que se queixa ele ainda? Pois quem jamais resistiu à sua vontade? Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?! Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra? Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão, os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios?” (9:19-24).

Primeiro, os seres humanos não são “objetos”. A palavra “plasma”, que foi traduzida por “objeto”, seria um material de molde, como é o barro. Nenhum objeto pode perguntar ao oleiro “Por que me fizesse assim?”, pois, se pudesse, perguntaria! A hipótese precisa ser bem lida: “SE Deus…. querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição…“. “Vaso de desonra” é um vaso sanitário por exemplo. Uma parte qualquer do barro precisa ser “vaso sanitário”, logo, alguém tem de ser. Mas, a questão aqui é: poderiam os judeus ser também tais vasos? A resposta é um sonoro “Sim”, bem como “Sim” também seria a resposta à pergunta “Podem os gentios ser vasos de honra?”. Houve, na História, pessoas que foram “preparadas” para fins específicos? Houve, sem dúvida. Faraó, Ciro, Judas, dentre outros. Esses homens foram “vasos de honra” ou “de desonra”, conforme suas histórias. Olhemos o exemplo de Faraó, do Êxodo. Este foi um homem que, à certa altura, diz-nos a Bíblia que “Deus endureceu o coração de Faraó”.

Mas observe que o mesmo aconteceu para um fim específico, isto é, para a não libertação dos judeus, até que as pragas fossem derramadas no Egito. Deus poderia ter simplesmente matado Faraó logo no início, com a primeira praga, mas não é assim que funciona. É por isso que um texto como esse, de Romanos, deve ser visto no contexto da parte 1 da Carta: mais do que uma questão de “separar para a salvação/condenação” está o fato de que, nesta “separação” (que se dá para o fim, isto é, para o propósito a ser cumprido por aquele determinado “vaso”), inclui-se a questão de que os vasos destes propósitos não seguirão linhagens étnicas, sanguíneas, ou serão fruto de observação de preceitos (obras), mas exclusivamente da autoridade “daquele que chama”, isto é, de Deus!
Podemos dizer que o rei Manassés foi um “vaso de desonra” por quase todo o tempo em que reinou em Judá. Foi idólatra, assassino, perverso, facínora. Eis o que a Bíblia diz acerca de Manassés:

Eles, porém, não ouviram; e Manassés de tal modo os fez errar, que fizeram pior do que as nações que o SENHOR tinha destruído de diante dos filhos de Israel. (…) Além disso, Manassés derramou muitíssimo sangue inocente, até encher Jerusalém de um ao outro extremo, afora o seu pecado, com que fez pecar a Judá, praticando o que era mau perante o SENHOR” (2 Rs. 21:9, 16).

Sabemos que Manassés foi, durante boa parte de seu reinado (certamente, a maior parte do tempo), um idólatra assassino. Contudo, a Bíblia nos diz também sobre ele:

Falou o SENHOR a Manassés e ao seu povo, porém não lhe deram ouvidos. Pelo que o SENHOR trouxe sobre eles os príncipes do exército do rei da Assíria, os quais prenderam Manassés com ganchos, amarraram-no com cadeias e o levaram à Babilônia. Ele, angustiado, suplicou deveras ao SENHOR, seu Deus, e muito se humilhou perante o Deus de seus pais; fez-lhe oração, e Deus se tornou favorável para com ele, atendeu-lhe a súplica e o fez voltar para Jerusalém, ao seu reino; então, reconheceu Manassés que o SENHOR era Deus. Depois disto, edificou o muro de fora da Cidade de Davi, ao ocidente de Giom, no vale, e à entrada da Porta do Peixe, abrangendo Ofel, e o levantou mui alto; também pôs chefes militares em todas as cidades fortificadas de Judá. Tirou da Casa do SENHOR os deuses estranhos e o ídolo, como também todos os altares que edificara no monte da Casa do SENHOR e em Jerusalém, e os lançou fora da cidade. Restaurou o altar do SENHOR, sacrificou sobre ele ofertas pacíficas e de ações de graças e ordenou a Judá que servisse ao SENHOR, Deus de Israel. Contudo, o povo ainda sacrificava nos altos, mas somente ao SENHOR, seu Deus. Quanto aos mais atos de Manassés, e à sua oração ao seu Deus, e às palavras dos videntes que lhe falaram no nome do SENHOR, Deus de Israel, eis que estão escritos na História dos Reis de Israel. A sua oração e como Deus se tornou favorável para com ele, todo o seu pecado, a sua transgressão e os lugares onde edificou altos e colocou postes-ídolos e imagens de escultura, antes que se humilhasse, eis que tudo está na História dos Videntes” (2 Cr. 33:10-19).

Afinal, Manassés foi um “vaso de honra” ou “de desonra”? E o ladrão da cruz, à direita de Jesus? (Lc. 23:43). E milhões e milhões de casos, de pessoas que honraram a Deus, por exemplo, durante toda a sua vida, mas apostataram em seus leitos de morte, como vice-versa, outros que foram grandes blasfemadores diante de Deus, mas se converteram em seus leitos de morte? A simples resposta de que são vasos de honra ou de desonra mediante sua condição ante a salvação é insuficiente perante o texto de Romanos 9, em questão! Pois os “vasos” sobre os quais Paulo fala, são aqueles “cujos usos” manifestaram para o que eram aqueles vasos: se para a honra, ou para a desonra.

Concluímos, portanto, que quanto àquilo que Paulo fala acerca de vasos de honra ou desonra, refere-se a nações, povos ou mesmo grupos, ou ainda pessoas com fins (ações) específicas, diante das quais está Deus, que orquestra um plano infinitamente grandioso, mas que não é arbitrário em absoluto, pois não somos coisas. Voltemos ao exemplo do rei Manassés: para um judeu que teve um de seus filhos ou filhas mortos pelo sanguinário Manassés, que era devoto de Moloch, divindade cujo culto consistia em oferecer crianças recém-nascidas para serem queimadas vivas, Manassés (mesmo tendo se arrependido durante o fim de sua vida) fora “um vaso de honra”, afinal?

Ninguém em são juízo dirá que Manassés fora um “vaso de honra”, desde sempre, por uma predestinação que não se explica, arbitrária, “inefável”, indiscernível. Muito mais condizente com a História da Salvação, aliás, História em que se constrói o alvo principal da primeira parte da Carta aos Romanos, é perceber que Manassés tornou-se um “vaso de honra”, pois durante muito tempo fora “vaso de desonra”. E é por isso que devemos olhar o texto de Romanos 9 sob a luz do contexto de toda a primeira parte… que ainda não terminou!

O desfecho da primeira parte de Romanos: caps. 10 e 11!

Paulo termina o capítulo 9 da seguinte maneira:

Que diremos, pois? Que os gentios, que não buscavam a justificação, vieram a alcançá-la, todavia, a que decorre da fé; e Israel, que buscava a lei de justiça, não chegou a atingir essa lei. Por quê? Porque não decorreu da fé, e sim como que das obras. Tropeçaram na pedra de tropeço, como está escrito: Eis que ponho em Sião uma pedra de tropeço e rocha de escândalo, e aquele que nela crê não será confundido” (9:30-33).

Veja que os gentios alcançaram a justificação…. pela fé. Assim como os judeus não a alcançaram, pois imaginavam que a conseguiriam pelas obras. Ora, os judeus são “vasos de desonra”? Sim, mas não porque Deus assim determinara, pois Deus determinara que seriam quaisquer daqueles que não buscassem a justificação pela fé. Isso já estava explícito no capítulo 3, mas o ápice da argumentação paulina encontra-se no fim desta primeira parte. E é nela que percebemos plenamente o conceito aqui defendido. Assim Paulo começa o capítulo 10:

Irmãos, a boa vontade do meu coração e a minha súplica a Deus a favor deles são para que sejam salvos. Porque lhes dou testemunho de que eles têm zelo por Deus, porém não com entendimento. Porquanto, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à que vem de Deus. Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê” (10:1-4).

Ora, um texto como esse não teria sentido algum se Paulo compreendesse a imutabilidade do estado de “vasos de honra” ou “de desonra”. Quero dizer: se um vaso de honra o é desde a eternidade, num ocaso de predestinação irrestrita, quaisquer tentativas de se mudar isso cairiam num solipsismo, o qual nos levaria à loucura. Pensar sobre essa situação, nestes moldes, é quase impossível, a não ser para os que se consideram confortavelmente “vasos de honra”, pois nas suas mentes estão salvos mesmo… mas, de fato estão? Bem, a lógica da evangelização e da conversão é justamente essa: fazer com que pessoas, normalmente fadadas à morte, à condenação, sejam transformadas. Vejamos o que diz o Apóstolo dos gentios:

Ora, Moisés escreveu que o homem que praticar a justiça decorrente da lei viverá por ela. Mas a justiça decorrente da fé assim diz: Não perguntes em teu coração: Quem subirá ao céu?, isto é, para trazer do alto a Cristo; ou: Quem descerá ao abismo?, isto é, para levantar Cristo dentre os mortos. Porém que se diz? A palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração; isto é, a palavra da fé que pregamos. Se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Porque com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação. Porquanto a Escritura diz: Todo aquele que nele crê não será confundido. Pois não há distinção entre judeu e grego, uma vez que o mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam. Porque: Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas!” (10:5-15).

Paulo cita Deuteronômio 30. Em seguida, reproduziremos o texto de Dt. 30:10-18:

Se deres ouvidos à voz do SENHOR, teu Deus, guardando os seus mandamentos e os seus estatutos, escritos neste Livro da Lei, se te converteres ao SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração e de toda a tua alma. Porque este mandamento que, hoje, te ordeno não é demasiado difícil, nem está longe de ti. Não está nos céus, para dizeres: Quem subirá por nós aos céus, que no-lo traga e no-lo faça ouvir, para que o cumpramos? Nem está além do mar, para dizeres: Quem passará por nós além do mar que no-lo traga e no-lo faça ouvir, para que o cumpramos? Pois esta palavra está mui perto de ti, na tua boca e no teu coração, para a cumprires. Vê que proponho, hoje, a vida e o bem, a morte e o mal; se guardares o mandamento que hoje te ordeno, que ames o SENHOR, teu Deus, andes nos seus caminhos, e guardes os seus mandamentos, e os seus estatutos, e os seus juízos, então, viverás e te multiplicarás, e o SENHOR, teu Deus, te abençoará na terra à qual passas para possuí-la. Porém, se o teu coração se desviar, e não quiseres dar ouvidos, e fores seduzido, e te inclinares a outros deuses, e os servires, então, hoje, te declaro que, certamente, perecerás”.

É muito peculiar que Paulo cite exatamente este texto, cujo contexto é de escolhas, de decisão. Alguns comentaristas afirmam que Paulo fora “voluntarista” até aí, ou seja, especificamente entre os capítulos 9 e 10 de Romanos. A arbitrariedade do voluntarismo, contudo, não permite que pensemos assim, haja vista que, dessa forma, faríamos de Deus o autor do Mal, o que é um absurdo. Mesmo os partidários calvinistas que defendem a idéia de uma “plano maior”, “mais ético”, cujos desdobramentos nós não sabemos, esquecem-se de explicar o seguinte ponto: como Deus pode ter decretado tudo – inclusive o Mal -, se este é imediatamente contrário à sua natureza, mesmo que seja necessário ante um plano inefável e superior? É claro que, com isso, não queremos dizer que o Homem está apto a compreender todas as nuances da natureza e propósitos divinos, mas também não queremos dizer que ele só está apto a nada conhecer

Se o reflexo da Justiça de Deus está em nossas consciências – como o Ap. Paulo afirmou que estava, no cap. 2 -, então este reflexo deve ser completo em sua limitação. Claro que não é todo, mas é completo na porção que é. E essa porção inclui a ideia de justiça, arbitrariedade, voluntarismo, parcialidade, etc. De modo algum, a criatura pode ser mais justa do que o Criador, e não falo isso apenas pela dificuldade de se entender os trechos acima, de Romanos 9, mas principalmente pelo nítido e claro paradoxo que a posição da predestinação irrestrita e incondicional teria com o claro ensino do oferecimento da expiação ilimitada:

Isto é bom e aceitável diante de Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1 Tm. 2:4).

Como sabemos que não se resolve um problema, criando-se outro, reafirmamos que Paulo faz uso de umahipótese, no texto do cap. 9, com o intuito de chegar ao capítulo 10. Observe a sequência que Paulo faz, das ações humanas (relativas à Igreja), essenciais no processo de levar a mensagem de salvação aos homens: “Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas!” (Rm. 10:14-15).

Observe que a sequência enviar – pregar – ouvir – crer é decorrente da Igreja, ou seja, a ação humana em decorrência da obediência à Comissão divina e a aceitação dos que ouvem a mensagem e a recebem em seus corações. Ora, se todo o plano divino incluísse operações contingentes (temporais) provenientes de uma mera sucessão de causalidades já predestinadas, programadas, irrevogáveis, não haveria qualquer necessidade dessas perguntas, pois elas não me parecem mera formalidade retórica (perguntas retóricas apenas), mas uma sucessão correta de deduções que atestam a importância de os cristãos (talvez, àquela época, ainda majoritariamente judeus) irem aos gentios.

Este pensamento, o da sucessão lógica de ações da Igreja e dos gentios (enviar – pregar – ouvir – crer) é reforçado pelo texto em Romanos que vem a seguir:

Mas nem todos obedeceram ao evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem acreditou na nossa pregação? E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo. Mas pergunto: Porventura, não ouviram? Sim, por certo: Por toda a terra se fez ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos confins do mundo. Pergunto mais: Porventura, não terá chegado isso ao conhecimento de Israel? Moisés já dizia: Eu vos porei em ciúmes com um povo que não é nação, com gente insensata eu vos provocarei à ira. E Isaías a mais se atreve e diz: Fui achado pelos que não me procuravam, revelei-me aos que não perguntavam por mim. Quanto a Israel, porém, diz: Todo o dia estendi as mãos a um povo rebelde e contradizente” (Rm. 10:16-21).

Paulo lamenta por ter pregado a quem não ouviu. Ele cita Isaías (53) e essa ideia reforça sua oração por seus compatriotas, como ele dizia fazer (10:1). No que se refere à predestinação, não fica estranho Deus “estender as mãos todos os dias a um povo rebelde e contradizente”? Claro que sim. E isso reforça ainda mais a ideia de quenão há paradoxo algum, isto é, não há duas ideias distintas sobrepondo-se uma à outra, mas uma única expressão da revelação de Deus que, suportada por exemplo atrás de exemplo, não cabe a ideia de uma eleição incondicional. Alguém, contudo, poderá replicar: “Mas, é necessário pregarmos, porque não sabemos quem foi eleito“. E quando o caso é o próprio Deus? Sabe ele ou não quem ele mesmo supostamente elegeu incondicionalmente para a salvação ou para a perdição? O texto acima, de Romanos, destrói aquela réplica, assim como o seguinte:

Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!” (Mt. 23:37).

No capítulo 11, último da primeira parte de Romanos, como aconteceu nos caps. 9 e 10, Paulo parece confirmar a eleição condicional:

Pergunto, pois: terá Deus, porventura, rejeitado o seu povo? De modo nenhum! Porque eu também sou israelita da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim. Deus não rejeitou o seu povo, a quem de antemão conheceu. Ou não sabeis o que a Escritura refere a respeito de Elias, como insta perante Deus contra Israel, dizendo: Senhor, mataram os teus profetas, arrasaram os teus altares, e só eu fiquei, e procuram tirar-me a vida. Que lhe disse, porém, a resposta divina? Reservei para mim sete mil homens, que não dobraram os joelhos diante de Baal. Assim, pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevive um remanescente segundo a eleição da graça. E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça. Que diremos, pois? O que Israel busca, isso não conseguiu; mas a eleição o alcançou; e os mais foram endurecidos, como está escrito: Deus lhes deu espírito de entorpecimento, olhos para não ver e ouvidos para não ouvir, até ao dia de hoje. E diz Davi: Torne-se-lhes a mesa em laço e armadilha, em tropeço e punição; escureçam-se-lhes os olhos, para que não vejam, e fiquem para sempre encurvadas as suas costas” (11:1-10).

Se há alguma dúvida sobre que tipo de “eleição” ao qual Paulo se refere – i.e., se coercitiva, compulsória, incondicional ou, por outro lado, sinérgica, mediante a fé que o indivíduo deve desenvolver -, tal dúvida esvai-se quando olhamos o texto em seguida:

Pergunto, pois: porventura, tropeçaram para que caíssem? De modo nenhum! Mas, pela sua transgressão, veio a salvação aos gentios, para pô-los em ciúmes. Ora, se a transgressão deles redundou em riqueza para o mundo, e o seu abatimento, em riqueza para os gentios, quanto mais a sua plenitude! Dirijo-me a vós outros, que sois gentios! Visto, pois, que eu sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério, para ver se, de algum modo, posso incitar à emulação os do meu povo e salvar alguns deles. Porque, se o fato de terem sido eles rejeitados trouxe reconciliação ao mundo, que será o seu restabelecimento, senão vida dentre os mortos? E, se forem santas as primícias da massa, igualmente o será a sua totalidade; se for santa a raiz, também os ramos o serão. Se, porém, alguns dos ramos foram quebrados, e tu, sendo oliveira brava, foste enxertado em meio deles e te tornaste participante da raiz e da seiva da oliveira, não te glories contra os ramos; porém, se te gloriares, sabe que não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz, a ti. Dirás, pois: Alguns ramos foram quebrados, para que eu fosse enxertado. Bem! Pela sua incredulidade, foram quebrados; tu, porém, mediante a fé, estás firme. Não te ensoberbeças, mas teme. Porque, se Deus não poupou os ramos naturais, também não te poupará. Considerai, pois, a bondade e a severidade de Deus: para com os que caíram, severidade; mas, para contigo, a bondade de Deus, se nela permaneceres; doutra sorte, também tu serás cortado. Eles também, se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; pois Deus é poderoso para os enxertar de novo. Pois, se foste cortado da que, por natureza, era oliveira brava e, contra a natureza, enxertado em boa oliveira, quanto mais não serão enxertados na sua própria oliveira aqueles que são ramos naturais!” (11:11-24).

E aqui, antes do desfecho desta profunda primeira parte de Romanos, expõe-se novamente a tese de Paulo, de que “judeu é aquele que o é no interior”. Este “retorno” ou “recapitulação” se dá pelo exemplo dos ramos e da raiz da oliveira: quem não é natural da oliveira (os gentios, a quem Paulo dirige esta seção de Romanos), é “enxertado” na oliveira, e não deve se esquecer da herança que recebeu, oriunda do povo judeu. Herança que está, inclusive, na própria Escritura vétero-testamentária. Aqui, a ideia de “tornar-se” algo novo vem mais uma vez à tona. Assim como dissemos que o sentido “vasos de honra e desonra”, muito mais do que um estabelecimento imutável da eternidade, pareceu-nos a condição de estar diante de Deus, condição que pelo próprio nome implica numa possível mudança (quem era pode deixar de ser, e quem não é pode vir a ser): os ramos da oliveira podem ser “enxertados” ou “cortados”, inclusive os que já foram outrora “enxertados” ou “cortados” uma vez.

E como fica a “eleição”? Para que tenha sentido pleno, a ideia de “eleição” só pode funcionar, sem paradoxos, se vistacoletivamente. A eleição, sob uma perspectiva histórica, global, étnica, faz mais sentido, pois Deus quer a salvação de todos os homens, conforme nos dizem as Escrituras. Concluímos também que é por esse motivo que Paulo fala “eleição da graça”. Não é simplesmente um ato inefável, misterioso, indiscernível e paradoxal de escolher compulsoriamente alguns para a salvação, separando outros também compulsoriamente para a condenação eterna, mas considerar a graça para todos, recebida por aqueles que vierem a “ouvir”, afinal “a fé vem pelo(a) ouvir/pregação (gr., “akons”) e o ouvir/pregação (d)a Palavra”.

Após a explicação de que, a partir da desobediência de Israel, veio a salvação para os gentios (11:25), Paulo explica que após o tempo certo, o momento certo dos gentios, a “plenitude dos gentios” (gr., “πλήρωμα τών έθνών”), Israel será salvo. Vários intérpretes, principalmente antes de 1948, sequer viam uma restauração física para Israel, muito menos espiritual. Este foi o caso, por exemplo, de Louis Berkhoff, que afirmou em sua Teologia Sistemática que “não via quaisquer sinais de Israel voltando a ser uma nação”. Contudo, outros intérpretes insistiam que um primeiro sinal da salvação espiritual de Israel seria sua restauração nacional e, desde então, os judeus têm sido alvo do mundo, dadas as tensões com os povos árabes e palestino. Seja como for, parece-nos que restauração de Israel dar-se-ia como a História mostrou, com uma primeira etapa, física, e outra, espiritual. Homens e mulheres judeus, de várias realidades diferentes, são partícipes desta promessa, assim como gentios. Mas, quais judeus equais gentios? Podemos dizer que, em termos de abrangência, a salvação tem que alcance? A última linha argumentativa de Paulo, na primeira parte da Carta aos Romanos, nos responde:
Συνέκλfισε γιΧρ δ Θεος τοUς πάvτας είς άπείθειαν ‘ίνα τού πάντας έλεήστι” (“Porque Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos“), 11:32.

Como não poderia deixar de ser, termino este conciso texto acerca da primeira parte da Carta aos Romanos com o último texto da mesma. Faço minhas as palavras do Apóstolo dos gentios:

Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!(Romanos 11:33-36).

Bacharel em Teologia e Filosofia. Pós-graduado em Gestão EaD e Teologia Bíblica. Mestre e Doutorando em Filosofia pela UFPE. Doutor em Teologia pela FATEFAMA. Diretor-presidente do IALTH -Instituto Aliança de Linguística, Teologia e Humanidades. Pastor da IEVCA - Igreja Evangélica Aliança. Casado com Patrícia, com quem tem uma filha, Daniela.

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