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opinião

Sola grammatica: ortografia, ortodoxia e ortopraxia

Uma leitura precária contribui para um pensamento precário

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A Igreja brasileira necessita de uma reforma – creio que podemos partir dessa premissa. A crise que se abate sobre o evangelicalismo brasileiro é algo que se arrasta há muito tempo, trazendo confusão sobre a própria identidade evangélica, em meio a problemas espirituais, doutrinários, éticos e eclesiásticos. Portanto, reformar é preciso.

Tomando a necessidade de reforma como ponto pacífico, gostaria de propor que começássemos pela gramática. Falo sério. Além dos Cinco Solas, divisas que apontam para a essência da Reforma do Séc. XVI (Sola Scriptura, Sola Gratia, Sola Fide, Solus Christus, Soli Deo Gloria), poderíamos adotar o Sola Grammatica.

Primeiramente, sabemos que o Cristianismo protestante (reformado no sentido amplo) tem adotado como critério hermenêutico o gramático-histórico – ou histórico-gramatical -, o que exige, não apenas o conhecimento das línguas originais (grego e hebraico) por parte dos estudiosos, mas também aptidão do crente comum para leitura do texto bíblico quando traduzido. O gramático-histórico é o método dos reformadores, e é o que, por exemplo, a Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil elege em sua Declaração de Fé (publicada em 2017).

Com efeito, antes das regras hermenêuticas que recorrem à intenção do autor, à ocasião da escrita, ao contexto histórico ou ao sistema doutrinário e teológico está a regra gramatical, literal ou filológica (não me refiro ao método literal, mas ao critério literal, o que é diferente).

O critério literal pode até ser menos esclarecedor se comparado aos demais, porém nenhum dos outros critérios poderá ser adotado se o leitor não tiver competência para compreender o significado das palavras, orações e parágrafos. Sendo assim, o critério literal é o vestíbulo, a porta de entrada pela qual o intérprete terá condições de apreender por que o texto foi escrito, para que foi escrito, quando foi escrito, por quem foi escrito, para quem foi escrito, acerca de que foi escrito, e, enfim, o que ele requer de nós.

Dessa forma, antes da interpretação textual propriamente dita, há a questão da leitura, algo que, preciso dizer, é verdadeiro desafio para muitos cristãos brasileiros.

Em nosso país, por razões sociais, educacionais, culturais e políticas, há um enorme contingente de analfabetos funcionais, pessoas que leem com acentuada dificuldade, sem compreensão do texto. E não nos enganemos: mesmo adolescentes e jovens que frequentam aulas de português podem ser péssimos leitores, porque a educação em nosso país, pública ou particular, padece de carências abissais.

Temos na internet uma espécie de caldo de cultura – ou de incultura -, onde se pode constatar com facilidade quão difícil é para muitas pessoas compreender o que o texto quer dizer. Muitas discussões giram em torno de interpretações equivocadas, o que produz um debate sofrível. Um exame rápido em seções de comentários de portais noticiosos pode deixar deprimido um amante do vernáculo e do bom siso.

A par da incompetência para entender textos está a propensão a incorrer em falhas doutrinárias, práticas eclesiásticas distorcidas e quiçá heresias que poderiam ser evitadas se o conhecimento gramatical fosse maior.

Lembro do exemplo dantesco (e verídico!) de certo “pastor” autonomeado que se relacionou com a esposa de um membro de sua seita ao fundamento de que o profeta Oseias fizera o mesmo sob as ordens de Deus. Na verdade, ele teria lido “Vai outra vez, ama uma mulher, amada de seu amigo e adúltera” (cf. Os 3.1) como “Vai outra vez, ama uma mulher, amada de seu amigo e adultera”.

Suspeito que naquele caso não tenha sido apenas o acento agudo o elemento desconhecido ao suposto “pastor”, havendo vícios de natureza diversa. Todavia, foi perceptível seu ar de espanto quando o repórter lhe fez ruir a “teologia” ao sacar um simples argumento ortográfico.

É possível que o leitor esteja pensando agora em interpretações bíblicas equivocadas que partem do desconhecimento da língua portuguesa. Passa pela minha mente ter ouvido, há anos, uma irmã dizer no culto que, em meio às tribulações, realmente os cabelos de seus pés ficam arrepiados porque “a terra [é] o escabelo dos meus pés (cf. Is 66.1).

Lembro desses episódios verídicos e bastante curiosos, não com uma finalidade cômica, mas para ilustrar a realidade a que me refiro, e para defender o entendimento de que, se a Bíblia foi escrita, e se a Bíblia é a Palavra de Deus para salvação do Homem, logo eu devo reconhecer que a leitura está relacionada com a espiritualidade.

Fico pensando na possibilidade de o público muitas vezes não compreender uma pregação expositiva por não reconhecer na fala do pregador conexão com aquilo que se lê em casa. Uma leitura precária contribui para um pensamento precário – a dificuldade de pensar, a inaptidão para estruturar o raciocínio de forma lógica é uma pedra de tropeço para muitos brasileiros, entre os quais se acham certamente milhões de evangélicos.

Meus amigos, muita energia poderia ser dispensada se concentrássemos esforços numa reforma cristã, protestante e evangélica que começasse pelo estudo da gramática, com suas vírgulas, pontos e travessões; orações coordenadas e orações subordinadas; substantivos, verbos e advérbios; adjetivos, pronomes e interjeições; artigos, conjunções, numerais e preposições – seria uma reforma para que o português deixasse de ser uma língua estranha… aos seus falantes.

Então, depois de assentar os elementos da fé, poderíamos avançar a conhecimentos bíblicos mais profundos, os quais, por ora, nos são impossíveis, dada a nossa incapacidade de ler e interpretar textos escritos na língua pátria.

O próprio exercício do estudo é uma demonstração de humildade cristã se a motivação é conhecer a Deus – e só se conhece a Deus, na Pessoa de Cristo, por meio de Sua Palavra (cf. Sl 119.11, 165; Jo 1.1-3,14; 8.32,36; 14.6; 17.3; I Co 15.1-4; II Tm 3.16,17; Hb 1.1-3; I Jo 1.1-4).

Que mais direi? Só posso concluir que, antes de uma ortodoxia (crença correta), precisaremos conhecer a ortografia, e, assim, pedir a Deus que nos conceda ortopraxia (prática correta).

Ministro do Evangelho (ofício de evangelista), da Assembleia de Deus em Salvador/BA. Co-pastor da sede da Assembleia de Deus em Salvador. Foi membro do Conselho de Educação e Cultura da Convenção Fraternal dos Ministros das Igrejas Evangélicas Assembleia de Deus no Estado da Bahia, antes de se filiar à CEADEB (Convenção Estadual das Assembleias de Deus na Bahia). Bacharel em Direito.

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