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opinião

As mulheres na Reforma Protestante

Todos conhecessem os nomes dos reformadores, mas poucos sabem que as mulheres também lutaram pelas ideias da graça e do sacerdócio universal de todo cristão.

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Marie Dentière
Nome de Marie Dentière no Muro da Reforma, em Genébra (Foto: Reprodução/Wikipedia)

Elas foram apagadas da história do cristianismo. Foram colocadas de lado, em segundo plano. Muitas vezes só aparecem ao lado dos nomes dos homens. São as esposas dos pastores, as amantes do rei, as filhas bastardas dos papas. E qual é o nome delas? O que fizeram pela igreja cristã?

Na Reforma Protestante não é diferente. Todos conhecessem os nomes dos reformadores, mas poucos sabem que as mulheres também lutaram pelas ideias da graça e do sacerdócio universal de todo cristão. É comum os livros citarem os nomes de Martinho Lutero, John Huss, João Calvino, Ulrico Zwinglio, entre outros. Mas quem foi a esposa de Lutero? E quais mulheres também debatiam sobre religião?

Inicialmente, é importante desfazer alguns mitos sobre a participação das mulheres na Reforma Protestante. Afirma-se que não se escreveu sobre as mulheres na Reforma porque elas não se interessavam por assuntos religiosos. Informação falsa. Elas se interessavam pela igreja cristã, sim. Existiram mulheres dedicadas às tarefas religiosas como pesquisa, estudo e escritos. Elas aceitaram a salvação pela fé pregada por Lutero, escreveram sobre doutrinas cristãs e defenderam as ideias reformistas. Então, já que elas também amavam religião como os homens, por que não aparecem nas pesquisas? Porque elas não tinham importância na época. Não era relevante falar sobre mulheres no século XVI. Elas foram citadas na história quando estavam próximas a personagens masculinos.

O feminino na época da Reforma – A teóloga Rute Salviano Almeida, licenciada em Estudos Sociais, mestra em Teologia, pós-graduada em História do Cristianismo e autora de vários livros sobre a participação da mulher na historia da igreja cristã, afirma, no livro “Uma voz feminina na Reforma”, que às mulheres cabia trabalhar na fiação. Inclusive objetos de fiação como a agulha, a roca e o fuso eram usados como símbolos de sujeição da mulher. Quando queriam diminuir uma mulher, mandava-a ir fiar e cuidar dos trabalhos domésticos. Para quem não sabe, os fusos são instrumentos para fiar a roca. A roca é um bastão ou vara, que tem na extremidade um bojo, em que se enrola o fio para fiar. Como hoje, no trânsito das grandes cidades brasileiras, alguns homens mandam as mulheres irem pilotar fogão, no século XVI mandava-se fiar a roca.

As escritoras da Reforma foram insultadas. Mandaram Catarina Zell parar de falar de assuntos da igreja cristã e se voltar para a sua máquina de fiar. Já Argula Von Grumbach sofreu ataques vulgares e grosseiros. Foi chamada de animal selvagem, de promíscua e que tinha abandonado o seu dever de fiar.

Na época da Reforma, era preciso saber ocupar as mulheres. A ocupação consistia na fiação, no cuidado com os filhos e maridos. O ambiente delas era doméstico. A profissão e a identidade delas era ser filha, mãe e esposa no século XVI. Aos homens cabia estudar, debater, produzir conhecimento em livros e panfletos. “As mulheres do século XVI deviam possuir as qualidades como silêncio, castidade, obediência ao marido e amor aos filhos. Não tinham destaques por si mesmas. Não tinham voz pública. A admoestação social e religiosa era para estarem caladas, de acordo com 1 Timóteo 2.12. Não deviam se envolver em assuntos religiosos”, explica a professora Rute.

Exemplos de homens diminuindo as mulheres na igreja não faltam. O jurista Florismond de Raemond disse que “é mais fácil fazer as mulheres caírem em heresia do que os homens, pois são fracas e imbecis (…)”. O poeta Jean Bouchet afirmou que “as mulheres não devem utilizar suas mentes para investigar questões curiosas de Teologia ou as coisas secretas da divindade cujo conhecimento pertence aos prelados, reitores e doutores.”

Existiram mulheres que foram criticadas, discriminadas e resistiram? Existiram mulheres que defenderam a Reforma e escreveram textos? Existiam mulheres cultas e estudadas dentro da igreja cristã? Como elas foram consideradas pelos próprios cristãos?

Na época da Reforma as escritoras não agradavam a alguns homens que as consideravam assexuadas e recomendavam que elas abandonassem as deformidades para se revestirem das qualidades próprias à mulher como silêncio, castidade, obediência ao marido e amor aos filhos. Ou seja, na visão desses homens, pensar, escrever, debater Teologia estava fora de questão para as mulheres.

Como os reformadores viam o papel das mulheres? Eles entendiam que as mulheres deveriam ficar caladas na igreja. A exceção foi João Calvino que tinha um olhar mais aberto. Ele se correspondia com muitas mulheres, dizia que era uma questão cultural o texto bíblico afirmar que a mulher deveria ficar calada no culto. Inclusive Calvino permitiu que as mulheres cantassem na igreja. Isso foi motivo de polêmica por parte dos homens que não concordavam com a ideia.

O ambiente religioso para as mulheres era desafiador. Mesmo assim, elas resistiram. Estudaram, escreveram e se posicionaram. Como a voz delas era reprimida, muitas resolveram usar a pena para fazer a diferença. Margaret King, no livro “A mulher do Renascimento”, afirma que “elevando suas vozes, as mulheres começaram a escrever e a lutar não mais com o fuso, mas com a pena. Para elas, seu combate pela paz era com seus escritos. Estavam empenhadas numa missão sagrada e, em primeiro lugar, escreviam sobre os filhos, para os filhos e aos filhos, depois escreviam a Deus, para Deus e a respeito de Deus.”

Vamos a quatro exemplos de mulheres que produziram saber na Reforma Protestante. Cristãs que marcaram a história da igreja. Falaremos sobre Àrgula Von Grumbach, Vittoria Colonna, Catarina Zell e Marie Dentiére.

Àrgula Von Grumbach (1492-1554), era da Baviera, a primeira mulher reformada da Europa. Foi apologeta. Defendeu a Reforma e os reformadores. Foi a primeira escritora evangélica. Protestou contra a Universidade de Ingolstadt quando Arsácio Seehofer foi preso. Um dos trechos da carta de Argula à Universidade de Ingolstadt, em 1523, dizia: “ao honrado, digno, nobre, erudito, ilustre e leal reitor e a todos os docentes da Universidade de Ingolstadt: Quando soube o que vocês fizeram a Arsácio Seehofer, sob o terror da prisão e da estaca, meu coração estremeceu e meus ossos se abalaram. O que tem Lutero e Melanchthon ensinado, exceto a Palavra de Deus? Vocês os condenaram. Vocês não os refutaram. Onde vocês leem na Bíblia que Cristo, os apóstolos e os profetas aprisionaram, baniram, queimaram ou assassinaram alguém? Vocês nos dizem que devemos obedecer aos magistrados. Correto. Mas nem o papa, nem o imperador, nem os príncipes têm qualquer autoridade acima da Palavra de Deus. Não pensem que vocês podem tirar Deus, os profetas e os apóstolos do céu com os decretos papais tirados de Aristóteles, que nem sequer era cristão. (…). Vocês buscam destruir todas as obras de Lutero. Nesse caso, vocês terão que destruir o Novo Testamento, que ele traduziu. Nos escritos alemães de Lutero e Melanchtho, não encontrei nada de heretic. Ainda que Lutero se retratasse, o que ele disse ainda seria a Palavra de Deus. Eu gostaria de vir e discutir com vocês em alemão. Vocês têm a chave do conhecimento e fecham o reino dos céus. Mas vocês estão derrotando a si mesmos. A notícia do que foi feito a este rapaz de 18 anos chegou a nós e a outras cidades em tão pouco tempo que em breve será conhecida em todo o mundo. O Senhor perdoará a Arsácio, como perdoou a Pedro, que negou seu mestre, embora não fosse ameaçado pela prisão e pelo fogo. Grande bem ainda virá deste jovem. Eu envio a você não palavras de mulher, mas a Palavra de Deus. Escrevo como membro da igreja de Cristo, contra a qual as portas do inferno não prevalecerão (…).”

A autora Heloisa Cralow Dalferth, no livro “Mulheres no movimento da Reforma”, comentando sobre os escritos de Birnstein, disse que Árgula queria debater com as autoridades. “Estou disposta a ir à Alemanha discutir com vocês e não precisam usar a tradução da Bíblia de Lutero. Mesmo se viesse a acontecer que Lutero negasse tudo o que disse – que Deus não o permita –, isso não mudaria em nada a minha opinião. Eu não construo a minha opinião sobre a opinião de Lutero ou de qualquer outra pessoa, mas sobre a verdadeira rocha: Jesus Cristo.”

No total, foram publicados mais de 30 mil exemplares da carta apologeta de Árgula. Ela também escreveu cartas abertas ao duque da Baviera e ao conselho municipal de Ingolstadt, que foram impressas e amplamente distribuídas. Os escritos dela tornaram-se best-sellers

na sua época. O material produzido (entre cartas e poemas) circularam fartamente na Alemanha.

A segunda mulher que comentaremos é a poetisa, mediadora política e reformadora religiosa italiana Vittoria Colonna, que viveu entre 1490-1547. Com primor, ela juntou poesia e fé. Fazia muitas reflexões teológicas.

Vittoria entendia que a Reforma da igreja deveria ser realizada sem ruptura entre dos fiéis. A poetisa defendia as doutrinas básicas da Reforma como a doutrina da justificação pela fé, como ensinada por Juan de Valdés, humanista espanhol, que foi perseguido pela Inquisição por seu livro “Diálogo da doutrina cristã”. Valdés se refugiou na Itália. Vitória só escapou das perseguições impostas pela Igreja Católica aos hereges porque era amiga do cardeal Reginald Pole, arcebispo de Cantuária.

A terceira mulher de destaque é Catarina Zell (1497-1562), casada com o pastor luterano Matheus Zell. Catarina se ocupava em defender a a doutrina do sacerdócio de

todos os crentes. Todos significa homens e mulheres. Outra área que ela atuava era em ajuda aos refugiados. Em casa ela recebeu cristãos refugiados que eram perseguidos. Recebeu o nome de mãe dos refugiados. Catarina foi autora de três cartas panfletárias, de seis livros e outros escritos que tiveram bastante repercussão na época. Ela publicou o Hinário dos Irmãos Boêmios em tcheco, escrevendo o prefácio.

A quarta mulher da nossa pesquisa é Marie Dentiére (1495-1561). Foi abadessa de um convento agostiniano. Defendia a Reforma e o direito da mulher de estudar da Bíblia.

Entendia que o sacerdócio universal de todos os crentes incluía as mulheres. Se elas tivessem acesso à Bíblia, poderiam interpretar e pregar a mensagem evangélica da salvação. Ela cria que o caminho para as mulheres buscarem sua identidade era por meio do conhecimento das Escrituras Sagradas. Escreveu: “se Deus deu graça a algumas boas mulheres, revelando a elas, através de suas sagradas escrituras, algo santo e bom, devem elas hesitar em escrever, falar e declarar umas às outras por causa dos difamadores da verdade? Ah, seria muito audacioso tentar detê-los, e seria muito insensato escondermos o talento que Deus nos deu, nós que temos a graça de perseverar até o fim. Amém.”

Com palavras firmes, desafiou as regras de seu tempo e escreveu: “eu pergunto: não morreu Jesus tanto pelos pobres iletrados e pelos tolos quanto pelos barbeados, tonsurados e clérigos? Será que ele disse somente: Vai pregar meu evangelho aos senhores sábios e grandes doutores? Ele não disse “a todos?”. Nós temos dois evangelhos: um para homens e outro para mulheres? Um para os eruditos e outro para o povo? Nós não somos um em nosso Salvador? Em nome de quem nós somos batizados? No de Paulo ou de Apolo, no do papa ou de Lutero? Não é no nome de Cristo?”.

As obras de Dentière foram: L’abécédaire ou grammaire élémentaire en français (Uma gramática francesa elementar), primeira gramática escrita em francês; La guerre et deslivrance de la ville de Genesve (A guerra e a libertação da cidade de Genebra), um relato histórico considerado o primeiro do gênero a ser impresso depois que a cidade aderiu à Reforma; L’Epistre très utile (A Epístola muito útil), que foi considerada um tratado teológico; e o prefácio de um sermão de Calvino sobre vestes femininas.

Mais escritos dela sobre o papel da mulher. “Até agora as Escrituras estavam bem escondidas delas. Ninguém se atreveu a dizer uma palavra sobre isso, e passou a impressão de que as mulheres não deveriam ler ou ouvir nada das Sagradas Escrituras. Esta é a razão principal, minha senhora, que me moveu a lhe escrever, esperando em Deus que daqui em diante as mulheres não sejam tão menosprezadas como no passado. Pois, dia após dia, Deus muda o coração de seu povo para o bem. É isso que eu oro. Para que aconteça logo em todo o mundo. Amém.”

Dentiére foi a primeira vítima de censura por parte do protestantismo. Ela não se calou e irritou até mesmo os reformadores de Genebra que a consideraram uma má conselheira para seu marido, o qual foi intitulado como joio no meio do trigo por Farel, em carta a Calvino, sendo transferido para a cidade vizinha de Massongy.

No século XX, em 3 de novembro de 2002, Marie Dentiere teve reconhecimento. Ela foi uma mulher que se expressou teologicamente. Recebeu destaque como participante do grupo dos reformadores de Genebra, recebendo seu nome gravado no Memorial da Reforma (foto abaixo). Nesse monumento (um muro com as estátuas dos reformadores) há nomes como John Huss. Wyclif, Calvino, Farel, Knox e Zwinglio.

Jornalista, teóloga e professora. É doutoranda em Teologia pela Escola Superior de Teologia, no Rio Grande do Sul. Tem mestrado em Teologia pela Escola Superior de Teologia. Pós-graduação em MBA Gestão da Comunicação nas Organizações pela Universidade Católica de Brasília. Bacharelado em Comunicação Social, Jornalismo, pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília. Licenciatura plena em História pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília. Bacharelado em Teologia pela Faculdade Evangélica de Brasília

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