cultura
Sistema carcerário: a dura realidade que poucos veem
Resenha sobre o livro “Estação Carandiru”.
Morte e vida
Outro ponto que ganhou grande espaço na obra, e que quero tratar nesse segundo artigo, foi o impacto e dinâmica das drogas dentro do Carandiru. No início do trabalho do autor, a droga que reinava no local era a cocaína injetável. Parece que ela foi o maior vetor de transmissão de AIDS no Carandiru, já que as seringas eram compartilhadas entre os usuários.
Relata o autor uma cena completamente bizarra, em que um usuário, depois de injetar a droga, bebeu um copo com uma mistura de água e sangue, água esta utilizada para lavar as seringas infectadas.
Com o passar do tempo, a cocaína injetável foi perdendo espaço para o crack. Em virtude das palestras que visavam à conscientização dos presos quanto aos meios de infecção do HIV, os presos passaram a preferir o crack, mais barato e que não passava AIDS.
Falando em prevenção do HIV, o médico autor do livro resolveu editar uma revista pornográfica periódica aos presos (Vira Lata), com informações sobre os meios de infecção da AIDS. Além disso, após as palestras cujo objetivo era informar sobre a infecção do HIV proferidas no Auditório, resolveu-se passar filmes pornográficos aos detentos, com a finalidade de “fidelizá-los” às palestras seguintes.
O médico relata, ainda, sua experiência com o atendimento dos doentes. Tuberculose, sarna, leptospirose e AIDS eram quase que unanimidade no presídio. Cerca de 78% dos travestis do presídio tinha AIDS.
Certa feita, uma quantidade grande de presos começou a chegar com sintomas de leptospirose (doença cujo vetor de transmissão é a urina do rato). Resolveu o médico fazer uma brincadeira com o preso e perguntou: o senhor também faz parte do grupo do túnel? Conta que o preso mudou de cor. Após isso, o médico desconversou e disse que não falava nada do que tratava com os pacientes a quem quer que fosse. Semanas depois, mais de 60 presos fugiram por um túnel que vinha sendo escavado.
Outro ponto digno de nota é o que o autor chama de “laranjas”. Segundo relatado, os laranjas eram aqueles que assumiam as responsabilidades pelos crimes e contravenções dos outros. Como impera na cadeia uma lei sem piedade, por meio da qual devedor que não paga morre, os drogados contumazes eram obrigados a assumir a função de laranjas para não serem mortos. É que, no Carandiru, segundo arrazoa um traficante no livro, não havia “departamento de cobrança”. Se o preso não pagasse os R$ 30,00 devidos e ficasse por isso mesmo, todo devedor iria querer fazer o mesmo. Assim, o traficante não recebia o dinheiro e era ameaçado de morte pelo fornecedor. Todavia, se mesmo sem receber o traficante matasse o usuário, o fornecedor veria que algo foi feito e não viria para cima dele (triste realidade conhecida por poucos).
Nesse cenário, os usuários de droga que não tinham como pagar eram colocados como laranjas, ou seja, não seriam assassinados, mas teriam que assumir os crimes cometidos pelos traficantes ou até mesmo cometê-los, como, por exemplo, o assassinato de outros devedores. Realmente, era um inferno na terra.
O autor reserva, ainda, um capítulo para falar dos crentes. Segundo o livro retrata, mais de 10% dos presos faziam parte do grupo dos crentes (aproximadamente 1.000 homens). Esse grupo de presos andava com blusas de mangas compridas, chamavam-se de irmãos, colarinho devidamente abotoado e sempre com a Bíblia Sagrada nas mãos, independente de para onde fossem.
Conta ainda que era o grupo de presos que menos dava trabalho no presídio, e que estava disposto a receber quem quisesse fazer parte. Todavia, o promitente a crente deveria apresentar impecável testemunho diante dos outros presos. É que os outros presos não mexiam com aqueles que se diziam convertidos, mas fiscalizavam de perto os neófitos.
Certa feita, um preso que se dizia convertido foi pego fumando um cigarro escondido: tomou uma surra dos outros presos que o deixou quase morto. Segundo relata o autor, assim disse um dos presos da enfermaria que atendeu o agredido: “Quer ser crente, nós respeitamos a caminhada dele, mas não pode tirar uma para cima da gente.”
A rotina dos convertidos era bem puxada: às 8h havia a primeira oração, que durava cerca de 60 minutos. Às 9h, dava-se início a uma Campanha, com duração de mais 60 minutos. A dinâmica da campanha era a seguinte: 30 minutos de oração, 15 minutos de louvores e 15 minutos de Palavra. Após essa Campanha das 9h, iniciava-se outra às 10h, em que um irmão levava uma palavra aos presos por cerca de uma hora e meia, até às 11:30h. Havia um intervalo para se tomar banho e almoçar rapidamente, já que às 15h havia um Culto ao ar livre. Terminava o Culto, todos subiam rapidamente, vez que as celas eram fechadas às 16h e os crentes não atribulam os funcionários, por questão de obediência e conduta.
Segundo o autor, dentre os grupos religiosos do local, os crentes eram os que apresentavam melhores frutos no presídio. Segundo relato do Pastor que havia no local: a gente sente Deus operando na existência deles. Aqui tem grade e muralha, não dá para fugir, mas você olha o céu e vê Deus. a presença d’Ele transmite paz e, com o coração inundado de fé, você ora com devoção para ir embora deste lugar maligno.
O livro traz ainda uma série de relatos e histórias pessoais dos presos. O que me chamou atenção nessas histórias foi o fato de que muitos criminosos acabam entrando num caminho de saída difícil e que o crime, muitas vezes, se apresenta como falsa solução de futuro, ilusão desvanecida com a dura realidade carcerária que estes veem ao serem presos.
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