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estudos bíblicos

Construindo uma sólida hermenêutica pentecostal

Reavaliando a hermenêutica pentecostal clássica, analisando as problemáticas e montando uma plataforma para interpretar a teologia lucana.

em

Bíblia Sagrada (Ben White Unsplash)

Há pouco tempo minha convicção sobre a Teologia Pentecostal Clássica sofreu um abalo estrutural. Depois de alguns anos de estudo, análise hermenêutica e leituras, cheguei à conclusão de que a defesa de um dos distintivos da Teologia Pentecostal Clássica era bastante vulnerável e problemática.

Estou falando da doutrina da Evidência Física, Inicial e Externa do batismo no Espírito Santo que é o falar em línguas. Eu estava pronto para abraçar uma perspectiva menos problemática[1] quando fui exposto aos escritos de Roger Stronstad e Robert Menzies, dois teólogos importantíssimos da apologética Pentecostal Norte Americana.

Em suas obras, ambos os autores reconheceram os mesmos problemas que eu identifiquei e lidaram com essas questões de forma ilustre e sensata.

Neste artigo, pretendo mostrar como esses dois teólogos deram um upgrade na teologia pentecostal clássica, dando uma contribuição gigantesca para a moderna Hermenêutica Pentecostal.

Questões problemáticas

É indiscutível que o Movimento Pentecostal está enfrentando uma crise de identidade e segundo Robert Menzies, essa crise é o “produto de um processo histórico que tem funcionado desde meados deste século em virtude da assimilação do Movimento Pentecostal no Evangelicalismo dominante.” (MCGEE 2019, p. 273)

Isto se deu porque as afirmações teológicas dos primeiros pentecostais foram feitas de forma isolada de outros setores do Cristianismo (MCGEE 2019, p. 273). Isto é, apesar do movimento ser plural em sua composição grupal, as relações com a hermenêutica evangélica não estavam de todo desenvolvidas. Devido a crenças como a da chuva serôdia e volta iminente de Cristo, os primeiros Pentecostais estavam mais comprometidos com a evangelização do mundo do que com a formulação de uma sólida apologética Pentecostal. Isto não quer dizer que os pentecostais não defendiam suas crenças, mas sim que a forma como as defendiam foram se tornando obsoletas conforme os anos foram se passando.

Aconteceu que depois da Segunda Guerra Mundial, Jesus não voltou e os pentecostais não puderam fugir da sua responsabilidade de saldar sua dívida com o Evangelicalismo, pois logo começamos a ter novas relações com os evangélicos e uma atmosfera de abertura e flexibilização se tornou inevitável (MCGEE 2019, p. 274).

Não demorou muito para que a nossa forma de fazer teologia fosse provada, principalmente num novo contexto, não mais de Revivalismo Norte-Americano, mas de Evangelicalismo Moderno. Segundo Menzies, “os principais dogmas da Teologia Pentecostal permanecem os mesmos, mas a maneira como nós Pentecostais nos aproximamos da Escritura- a hermenêutica que apoia nossa teologia- tem sido significantemente alterada. E então a hermenêutica do Evangelicalismo tornou-se a nossa hermenêutica.” (MCGEE 2019, p. 274)

Aqui no Brasil esse processo demorou mais e podemos garantir que ainda estamos engatinhando, mas com um grande avanço, tendo em vista que muitos materiais acadêmicos têm sido traduzidos para a nossa língua. Com raras exceções, podemos notar na literatura e reflexão teológica pentecostal anterior a esse processo, uma abordagem menos acadêmica e mais concentrada no aspecto confessional e pastoral, de certa forma, bem parecida com a dos pioneiros do pentecostalismo em nosso país. É preciso deixar isso claro, pois muitos pentecostais brasileiros estão estranhando essa forma com que os pentecostais norte-americanos fazem teologia, e, portanto, agindo com aversão a ela, o que não deixa de ser uma conduta bem curiosa.

No entanto, no contexto norte-americano, o pentecostalismo precisava fazer uma das duas escolhas: ou rejeitar a hermenêutica evangélica e se enclausurar do mundo acadêmico, ou adotá-la e enfrentar os desafios de seus distintivos, oferecendo respostas à altura. Felizmente, fizemos a segunda escolha. Por outro lado, custou caro aos dois distintivos da nossa teologia[2] pois a forma como as nossas formulações distintivas foram elaboradas no passado não é inteiramente compatível com a hermenêutica moldada pelo Evangelicalismo. (MCGEE 2019, p. 274) Então se o contexto do Movimento Pentecostal mudou, nada mais justo que lidar com as tensões que essa mudança produziu (MCGEE 2019, p. 274)

A primeira delas, lidava com a experiência do  Batismo no Espírito Santo que no Evangelicalismo, é equiparado com a conversão e assinala a entrada dos cristãos na nova aliança, enquanto que nós pentecostais defendemos que a experiência do Batismo pelo Espírito é (pelo menos logicamente, se não cronológica[3] distinta da conversão que coloca o cristão numa nova dimensão do poder do Espírito, dotando-o com poder para serviço. (MCGEE 2019, p. 275)

Segundo Menzies, o primeiro obstáculo do Pentecostalismo estava posto à mesa: “as tentativas tradicionais de oferecer apoio bíblico para nossa doutrina de subsequência não são mais viáveis em nosso novo contexto. Eles falham em falar a linguagem do Evangelicalismo moderno. De fato, há mais de vinte anos, Jammes Dunn apontou a falha metodológica característica dos argumentos pentecostais tradicionais.” (MCGEE 2019, p. 275)

Interessante que esta também foi a minha dificuldade durante meus estudos. Por não ver uma sólida consistência na forma como se defendia os distintivos (no meu caso, apenas a questão da Evidência Inicial), me vi tentado a abandonar um deles e isso se deu por que grande parte do material que eu tive acesso em Língua Portuguesa estava mergulhado nessa abordagem mais tradicional e mais antiga de fazer teologia. Então novas luzes começaram a raiar na minha mente: o problema estava mais no método (forma) do que na crença em si. Antes disso, não vi em muitos materiais brasileiros uma tentativa de enfrentar o problema, muitos menos uma flexibilidade para o diálogo o que me fez me distanciar ainda mais da doutrina da Evidência Inicial. Bem, pelo menos o Menzies estava fazendo algo que eu gostaria muito de ter visto em nosso vernáculo: apontar as falhas, os problemas e enfrentá-los.

James Dunn apontou cirurgicamente o problema da antiga abordagem pentecostal:

“O erro comum […] é tratar o NT (e até mesmo a Bíblia) como um todo homogêneo, de qualquer parte da qual os textos podem ser desenhados sobre um tema escolhido e enquadrados em um quadro e sistema que é muitas vezes basicamente extrabíblico.” (MCGEE 2019, p. 276)

E sugeriu tomar “cada autor e livro separadamente e […] esboçar o seu ou suas ênfases teológicas particulares; somente quando se configura um texto no contexto do pensamento e da intenção de seu autor […] Só então o teólogo bíblico pode sentir-se livre para se deixar o texto interagir com outros textos de outros livros.” (MCGEE 2019, p. 276)

Vale lembrar que nessa época, já estava bem definida na Hermenêutica Evangélica os principais gatilhos e ferramentas da teologia bíblica, agregados com um relacionamento bem mais amistoso com a crítica textual, em especial a crítica da forma e redação que foi usada nas discussões acerca dos relacionamentos entre cada teologia dos autores bíblicos, em especial a de Reis e Crônicas, os quatro Evangelhos (Harmonia dos Evangelhos) e as cartas de Paulo com a Epístola de Tiago.

Então o que Dunn propôs não era estranho no mundo acadêmico evangélico. Não é à toa que Menzies concorda com sua sugestão, apesar de afirmar que ele pode ser criticado por aplicar inconsistentemente seu próprio método. (MCGEE 2019, p. 276)

Assim, Menzies concorda que cada autor bíblico tem sua própria perspectiva teológica, um assunto que vamos comentar mais adiante. Mas por ora, vamos nos manter na questão dos problemas que envolvem a abordagem tradicional e primitiva dos pentecostais com relação aos distintivos, dessa vez especificamente sobre a Evidência Inicial. Essa questão foi para mim a mais problemática não somente pela questão exegética mais também histórica, tendo em vista que a doutrina da subsequência poderia ser rastreada muito antes do Pentecostalismo, algo que dificilmente se aplica à questão da Evidência Inicial.

Como se configura os argumentos tradicionais para apoiar a doutrina da Evidência Inicial? Segundo Menzies, se concentram no uso de 05 episódios de Atos (A 2,8,9,10,19) onde se afirma que a glossolalia acompanhou o batismo no Espírito. Nas suas palavras: “Novamente, a Bíblia é tratada como um todo homogêneo e os textos são organizados em conjunto com pouca consideração pelo autor ou esquema teológico global.” (MCGEE 2019, p. 277) Ou seja, essa plataforma tende a se relacionar de maneira embaraçada com o autor.

Não foi somente o Menzies que viu problemas e limitações na abordagem tradicional da Evidência Inicial, mas também o erudito e teólogo Pentecostal (por tradição) Gordon Fee. No caso deste, infelizmente ele foi completamente absorvido pela Hermenêutica Evangélica de modo que veio a rejeitar os dois distintivos da teologia Pentecostal. O próprio Menzies vê algum tipo de utilidade na crítica do Fee que identifica os problemas envolvidos na abordagem tradicional:

“Primeiro, a evidência não é uniforme: Se Lucas pretendia ensinar as línguas evidenciais como normativas, porque ele não apresenta consistentemente as línguas como resultado imediato do batismo no Espírito (exemplo, At 8.17; 9.17s)? Lembre-se, a questão-chave não é se Paulo ou os Samaritanos realmente falaram em línguas; mas sim, por que Lucas não mencionava explicitamente as línguas se era sua intenção estabelecer o padrão? Em segundo lugar, mesmo quando as línguas estão ligadas ao batismo do Espírito é duvidoso que essa conexão seja feita para apresentar as línguas evidenciais como uma doutrina normativa. Em outras palavras, é difícil argumentar, simplesmente com base na repetição de eventos (precedente histórico), que Lucas pretendeu ensinar a doutrina. É necessário mais para estabelecer a teologia normativa.” (MCGEE 2019, p. 277)

Menzies também vê utilidade nas observações metodológicas de James Dunn que em outras palavras explica que “em vez de se concentrar em passagens isoladas na tentativa de estabelecer um padrão normativo (como vimos, esta abordagem está destinada ao fracasso), devemos antes procurar reconstruir a perspectiva teológica (neste caso pneumatológica) do autor e avaliar sua relevância para a questão em apreço.” (MCGEE 2019, p. 277) Só depois de elucidar a perspectiva teológica do autor (no nosso caso, Lucas e Paulo) é que podemos então juntá-las para formar uma perspectiva bíblica holística.

O teólogo Pentecostal Donald Johns tem uma abordagem muito parecida com a do Menzies, pois sugere que os “modelos hermenêuticos passados podem ser inadequados para explicar a doutrina da evidência inicial…” (MCGEE 2019, p. 194) Para ele, a hermenêutica pentecostal tradicional clássica  tem sido criticada por não fornecer uma base exegética adequada para os dois distintivos do pentecostalismo e essa fenda tem sido demonstrada na prática pela quantidade de pessoas que agora são ex-pentecostais. (MCGEE 2019, p. 194)

Isto é, muitos pentecostais não encontraram nas velhas argumentações, respostas à altura e entraram em colapso. Dentre algumas objeções, estava o fato dos escritos de Paulo associar o Espírito com a conversão e os pentecostais usarem as línguas evidenciais como um padrão indutivo.[4]

Reavaliando a hermenêutica pentecostal clássica

De acordo com Johns, os pentecostais podem resolver seus problemas adotando e refinando métodos interpretativos aceitos (MCGEE 2019, p. 195) e encontrar um aliado nos recursos da erudição bíblica, particularmente nas recentes contribuições da crítica literária e narrativa, bem como da teologia. Com essas ferramentas, eles podem enfrentar o desafio de mostrar como a narrativa histórica realmente ensina a teologia normativa. (MCGEE 2019, p. 196)

Isso pode soar estranho para alguns pentecostais, como de fato tem acontecido. O próprio Johns comenta de pentecostais clássicos fizeram má associações à sua proposta de usar técnicas que levam “crítica” ou “crítico” em seus nomes como ataques à veracidade ou autoridade das Escrituras.

No entanto, ele menciona que o que ele pede é uma aplicação construtiva dessas técnicas (MCGEE 2019, p. 196)

Aqui no Brasil, algo parecido tem acontecido com relação à algumas obras que estão sendo traduzidas para nossa língua. O teólogo pentecostal Roger Stronstad há uns tempos desses foi acusado de introduzir liberalismo teológico dentro do pentecostalismo, uma informação que nem de longe pode ser verdadeira. Eu particularmente creio que essas associações negativas são feitas majoritariamente para denegrir aquilo que se discorda, uma postura que não deixa de ser lamentável.

Em última instância, o que Johns propõe não é uma revisão completa da hermenêutica pentecostal clássica, mas um polimento e desenvolvimento mais sólido de seus métodos a fim de manter de pé os seus distintivos.

Montando a plataforma

É nesse contexto que nasce então a Hermenêutica Pentecostal Moderna, como filha da Hermenêutica Evangélica mais abrangente. A partir daí, todas as evidências e dados relevantes dos dois escritos de Lucas passam a ser investigados e não somente passagens isoladas. A título de exemplo ilustrativo: fica claro de acordo com o escopo geral lucano que o dom pentecostal (batismo no Espírito) é separado da fé salvadora.

Ou seja, no próprio Evangelho de Lucas podemos constatar que as pessoas possuíam fé salvadora (o que implica conversão), mas que não tinham o batismo no Espírito. Sendo assim, embora em Atos 8.4-17 não tenhamos um foco da intenção primária na Subsequência, mas na aprovação divina e apostólica da entrada dos Samaritanos na nova aliança, isso não vai contra as implicações gerais da pneumatologia lucana que claramente atesta a distinção entre regeneração e batismo.

Por outro lado, outra questão pode ser levantada: como um texto histórico pode revelar a perspectiva teológica de autor bíblico? Menzies explica que nessa tarefa, a erudição evangélica tem sido judiciosa (sensata, ajuizada, conciliadora, criteriosa, moderada, ordeira) na utilização e benefício da história, redação e várias formas de crítica literária. (MCGEE 2019, p. 279)

Menzies é corajoso e admite que “desnecessariamente tentamos demonstrar que Lucas pretendia ensinar as línguas evidenciais. No entanto, a questão do que constitui a evidência inicial de uma pessoa que recebeu o batismo no Espírito simplesmente não é levantada no Novo Testamento. Ou seja, nem Lucas, nem qualquer outro autor bíblico se propõem deliberadamente a demonstrar que línguas é a evidência física inicial daquela experiência de capacitação (e dimensão da atividade no Espírito Santo).[5] Contudo, esta conclusão não significa necessariamente tornar a doutrina inválida nem indicar que as questões associadas à doutrina são inadequadas.” (MCGEE 2019, p. 280)

A relação entre as línguas e batismo no Espírito Santo, para Menzies no entanto, é uma inferência apropriada (MCGEE 2019, p. 282) de modo que quando se recebe o dom Pentecostal, deve-se esperar que se manifestem línguas,  e esta manifestação é um sinal demonstrativo de que alguém recebeu o batismo no Espírito e é um lembrete de que a igreja é uma comunidade profética habilitada para uma tarefa missionária.

Menzies acredita que a Evidência Inicial é muito promissora e até pode ser uma formulação humana, mas capta bem o sentido da expectativa exigida por Lucas e Paulo. (MCGEE 2019, p. 285)

Sendo assim, ele acredita que essa nova plataforma metodológica com relação aos distintivos é apenas o começo (MCGEE 2019, p. 283) e abre nossos olhos para um desafio muito maior: “devemos influenciar o mundo evangélico ou ele nos influenciará! Em suma, se quisermos ter um impacto sobre isso e especialmente sobre a próxima geração, devemos produzir artigos e livros que falem o idioma de nossos dias e que forneçam uma forte base teológica para nossas doutrinas. Levará tempo, esforço e encorajamento das instituições, mas nossa voz será ouvida.” (MCGEE 2019, 286)

Definindo as ferramentas interpretativas

Quais seriam então as diretrizes ideais para essa nova plataforma de interpretação? Pois bem, vamos lá:

Em primeiro lugar, os pentecostais tradicionais fundamentaram suas doutrinas do livro de Atos. No entanto, nessa nova plataforma, a obra conjunta de Lucas (Lucas-Atos) é objeto de análise teológica, bem como o próprio autor (quem ele é e como escreve). Para Stronstad, interpretamos corretamente o registro de Lucas sobre o Espírito Santo quando resolvemos três problemas metodológicos fundamentais, a saber: a homogeneidade literária e teológica de Lucas-Atos, o caráter teológico da historiografia lucana e a independência teológica de Lucas. (STRONSTAD, A Teologia Carismática de Lucas 2018, p. 15)

Os Pentecostais também veem Lucas não apenas como um historiador, evangelista e médico, mas também como um grande teólogo e professor. Segundo Anthony D. Palma “os escritos de Lucas pertencem ao gênero literário da História. Mas o livro de Atos é mais do que a história da Igreja Primitiva. Acadêmicos contemporâneos, especialmente afirmam que Lucas foi um teólogo à sua moda, bem como um historiador. Ele usa a História como um meio para apresentar sua teologia.” (PALMA 2011, p. 11)

Em segundo lugar, Lucas precisa ser lido em seus próprios termos e não pelas lentes de Paulo, pois ele é teólogo por direito próprio e não somente historiador. Isso evita por exemplo, a paulinização dos escritos de Lucas, ofuscando sua voz inconfundível. Menzies reconhece que essa prática é real e vê isso como um dano (R. P. MENZIES 2016, pp. 53,54) e que em certo sentido, cria um cânon dentro de outro cânon. (R. P. MENZIES 2016, p. 96)

O pastor assembleiano José Gonçalves ressalta: “Um erro bastante comum cometido por vários teólogos, principalmente aqueles que não creem na atualidade dos dons espirituais, é tentar ‘paulinizar’ os escritos de Lucas. Por não entenderem o pensamento lucano, não o vendo como teólogo como de fato ele era, mas apenas como um historiador, tentam interpretá-lo à luz dos escritos de Paulo. Evidentemente que toda Escritura é inspirada por Deus e que o princípio da analogia é uma das ferramentas básicas da boa exegese, todavia isso não nos dá o direito de transformar Lucas em mero coadjuvante da teologia paulina. (…) Lucas não deve ser entendido apenas como um historiador dos fatos históricos, mas como um teólogo que escreveu a história.” (GONÇALVES 2015, p. 12)

Desta forma, a narrativa bíblica ganha o mesmo peso teológico que as Epístolas e cada narrador bíblico expressou uma teologia própria (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 37,38) O teólogo Roger Stronstad também é crítico quanto à prática de ler Lucas pelas lentes paulinas. (STRONSTAD, Teologia Lucana sob Exame 2018, p.15) e propõe solidamente que Lucas foi um teólogo independente. (STRONSTAD)

A Teologia Carismática de Lucas 2018, pp. 25-30) Anthony D. Palma completa: “Um escritor bíblico precisa ser compreendido em seus próprios termos. Um texto paulino não pode ser sobreposto ao texto de Lucas, nem Lucas sobre Paulo.” (PALMA 2011, p. 10)

Ele ainda diz que “depois que um escritor bíblico é compreendido em seus próprios termos, então seus ensinamentos devem ser relacionados àqueles de outros escritores e ao todo das Escrituras.” (PALMA 2011, p. 11)

Em terceiro lugar, devemos sustentar os distintivos pentecostais a princípio pela via da teologia bíblica e somente depois de maneira mais sistemática. Nisso fica claro que a teologia bíblica[6] é diferente da sistemática.[7] Para o teólogo pentecostal Anthony D. Palma, “para se ter uma compreensão adequada da disciplina de teologia bíblica é preciso dominar a exegese da Escritura.” (PALMA 2011, p. 10)

Em quarto lugar, a narrativa bíblica (no nosso caso lucana) também pode ser interpretada com ferramentas da erudição bíblica, como a ideia de que os autores bíblicos normalmente incluem os discursos dos seus personagens para fazer seus próprios apontamentos (MCGEE 2019, p. 202), incluindo o uso da crítica da redação (ou composição) para explicar o porquê os autores bíblicos modificam o material escrito a fim de se ajustar ao seus propósito ou agenda teológica.[8] (MCGEE 2019, pp. 202,203)

Ao mesmo tempo que estabelece controles que impedem o texto de dizer o que ele não diz. Dessa forma, ela pode ajudar os pentecostais clássicos a fazer a exegese dos principais textos bíblicos. (MCGEE 2019, p. 203)[9]

Semelhantemente podemos fazer bom uso da teologia narrativa (crítica da forma) que nos ajuda a entender como as pessoas usam as histórias bíblicas e quais efeitos elas têm sobre nós. Segundo Johns, essas histórias formam os padrões básicos para nossas próprias histórias pessoais. (MCGEE 2019, p. 205) e talvez seja nesse sentido que Menzies ensine que para o pentecostal, as histórias de Atos são suas próprias histórias. (R. P. MENZIES 2016, p. 22)

O professor assembleiano Gutierres Fernandes Siqueira confessa que é perceptível hoje “na hermenêutica evangélica que o pentecostalismo ajudou a resgatar a diversidade da pneumatologia do Novo Testamento, especialmente pelo uso dos estudos da crítica da redação e da chamada teologia bíblica, mas sem abraçar o ceticismo sobre a unidade, inspiração, inerrância e coerência das Escrituras” e explica que o “método histórico-crítico por muito tempo enxergou nos evangelistas apenas compiladores de tradições cristãs primitivas diferentes, e o método histórico-gramatical negligenciou as narrativas bíblicas, mas a crítica da redação permitiu resgatar o mérito teológico dos evangelistas. Assim, a crítica da redação indicou que os redatores dos Evangelhos usaram suas fontes primárias para determinar o propósito teológico de cada narrativa, e, nesse aspecto, o evangelista Lucas editou o seu material (Evangelho e Atos) para acentuar o papel do Espírito Santo na vida de Jesus e na comunidade profética.”

No entanto, Gutierres deixa bem claro que esse processo de edição das fontes para um propósito teológico não quer dizer que o evangelista Lucas tenha inventado alguma história para criar uma teologia. (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, pp. 35,36)

Anthony D. Palma também deixa uma contribuição importante quando afirma que “dentro da estrutura do método histórico crítico de interpretação das Escrituras, a chamada crítica redacional ganhou larga aceitação em anos recentes. Sua premissa bíblica é de que o escritor bíblico é um editor, e que seus escritos refletem sua teologia. Ele pode examinar o material que tem em mãos e adequá-lo de modo a apresentar sua agenda teológica pré-determinada. Basicamente, a crítica redacional é uma ótica legítima e necessária. Mas em sua forma mais radical, permite que o autor modifique e distorça os fatos, mesmo para criar e apresentar uma história como factual, com o objetivo de promover suas propostas teológicas. (…) Essa forma radical de crítica redacional é inaceitável para aqueles que têm uma visão elevada da inspiração bíblica. O Espírito Santo não permitiria que um escritor bíblico apresentasse como fato algo que não tivesse realmente acontecido.” (PALMA 2011, p. 12)

Palma também comenta que a “teologia narrativa é uma abordagem relativamente recente para os hermeneutas. Um aspecto seu é chamado ‘analogia narrativa’. Essa ‘analogia’ tem afinidades com a aproximação pentecostal tradicional da compreensão do batismo no Espírito com base no livro de Atos.” (PALMA 2011, p. 12)[10]

Em quinto lugar, a teologia (pneumatologia) de Lucas é distinta da de Paulo. Segundo Menzies, Paulo foi o primeiro cristão a atribuir funções soteriológicas ao Espírito e que suas percepções distintas só impactaram os setores não paulinos da igreja primitiva depois que Lucas-Atos foi escrito (cerca de 70 d. C). Sendo assim, a teologia de Lucas relativa ao Espírito é diferente da teologia de Paulo. Ao contrário de Paulo, que fala da dimensão soteriológica da obra do Espírito, Lucas consiste em descrever o Espírito como dom carismático ou fonte de poder para serviço. (R. P. MENZIES 2016, 41) No entanto, essa dimensão teológica de Lucas precisa ser colocada lado a lado da de Paulo (R. P. MENZIES 2016, p. 42) e isso é mais que uma ênfase especial, mas uma clara demonstração de teologia distintiva do Espírito, em última análise complementar, porém diferente. (R. P. MENZIES 2016, p. 43)

Comentando sobre Lucas, o pastor José Gonçalves subscreve a abordagem do teólogo pentecostal canadense Roger Stronstad que demonstra que uma abordagem errada na análise do Evangelho de Lucas, tem levado muitos a conclusões teológicas igualmente erradas. (GONÇALVES 2015, p. 13) Eu diria que o mesmo se aplica a toda a obra de Lucas-Atos! Ele também ensina que o desenvolvimento histórico da doutrina do Espírito Santo possui contrastes nas diversas tradições cristãs e isso pode ser explicado não somente pela questão teológica, mas também metodológica e hermenêutica. (GONÇALVES 2015, p. 13)

Naturalmente, se o método muda, a conclusão também. Assim, a teologia de Lucas deve ser derivada de toda sua obra, da mesma forma que a de Paulo através dos seus escritos (cartas). (GONÇALVES 2015, p. 13) As mais recentes publicações têm demonstrado que os teólogos estão cada vez mais propensos a ensinar e admitir que o livro de Atos com propósitos teológicos e não meramente históricos, incluindo o próprio John Stott (antes crítico dessa abordagem), D.A. Carson, Leon Morris, Douglas J. Moo, David S. Dockery, Ian Howard Marshall e outros. (SIQUEIRA, Revestidos de Poder 2018, pp. 99,100) Segundo Gutierres Siqueira, “encarar a narrativa bíblica apenas como uma espécie de registro jornalístico da história da salvação empobrece enormemente a leitura das Escrituras.” (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 47)

Em sexto lugar, sendo assim, há dois batismos no Espírito: um que é soteriológico (1 Co 12.13) e outro missiológico (At 1.8) (R. P. MENZIES 2016, p. 54) O primeiro acontece na conversão, e o segundo como sinônimo de poder, não sobrepondo nenhum autor da Bíblia sobre o outro. (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 96) No entanto, os pentecostais por questões didáticas, com relação ao primeiro batismo, preferem usar a expressão: batismo pelo Espírito, colocando o Espírito como o agente ativo. (PALMA 2011, p. 22)

Em sétimo lugar, os Pentecostais possuem uma hermenêutica distinta da ala liberal da igreja protestante. É verdade que tanto pentecostais quanto liberais possuem uma ênfase nos Evangelhos, o que torna um terreno em comum, no tanto existe uma grande diferença: os liberais olham com ceticismo para os Evangelhos, enquanto nós vemos com fé, crendo na inspiração e na inerrância de toda a Escritura. (R. P. MENZIES 2016, p. 98)

Os liberais têm um forte compromisso com o iluminismo e o racionalismo. No entanto, segundo Gutierres, a “hermenêutica pentecostal não é moderna, a saber iluminista e racionalista. Na relação de tempo, o iluminismo pregava o esquecimento, o rompimento e a destruição do passado. Pelo contrário, o pentecostalismo é um restauracionismo. O pentecostalismo quer resgatar o passado no presente. Não ansiamos pela invenção da roda, mas caminhamos sobre as rodas já inventadas. Somos evangélicos, conservadores, mas não fundamentalistas e reacionários, que é a mania de quem coloca a roda em cima para admirá-la.

A hermenêutica pentecostal é a convergência entre a preocupação com a objetividade do texto como autoritativo e universalmente válido em uma só mensagem na busca da intenção autoral- que é o que caracteriza o moderno método histórico-gramatical- ao mesmo tempo em que se preocupa com o espaço do leitor e de sua experiência…”, inclusive o Pentecostalismo é o grupo evangélico que “mais soube aproveitar a hermenêutica desenvolvida  a partir dos anos 1960, especialmente as conclusões sobre a leitura narrativa, da crítica da redação e do papel experiencial do leitor, sem jogar fora o seu compromisso com a visão evangélica das Escrituras.” (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 40)

Sem falar que nossa hermenêutica não é naturalista, pois acredita na intervenção de Deus no mundo, se afastando assim do antisobrenaturalismo apregoado pelo liberalismo teológico. (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 51) Na prática, “sempre houve a rejeição do modernismo teológico e de sua hermenêutica racionalista entre os pentecostais porque essa corrente era associada pelos pentecostais à incredulidade. (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 73)

O pastor assembleiano César Moisés Carvalho também é enfático ao dizer que o ensino bíblico dos Pentecostais deve depender da nossa leitura e do estudo das Escrituras que precisa de um método distinto utilizado pelos liberais e cessacionistas. (CARVALHO 2017, p. 256)

Em oitavo lugar, a experiência também tem seu lugar na leitura que os pentecostais fazem da Bíblia, inclusive, essa não é uma singularidade dos pentecostais. (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 39) Para Gutierres, a experiência certamente é subjetiva e deve ser tomada com cuidado, mas a falta dela é igualmente destruidora. (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 40) Ele garante que a leitura legítima das Escrituras envolve transformação de quem lê, pois a leitura da Bíblia é relacional. (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 47) Outro teólogo pentecostal que contribuiu para essa questão foi Craig S. Keener.

Segundo ele, ler biblicamente é ler experiencialmente, no entanto, esse tipo de leitura responsável não endossa um puro subjetivismo na interpretação. A espiritualidade pentecostal sempre leu as Escrituras experiencialmente, no entanto, isso não é a mesma coisa que dizer que os pentecostais interpretam a Bíblia à luz das suas experiências. (KEENER 2018, pp. 67,68) São duas coisas distintas. Para Keener, a leitura experiencial não está sozinha, mas vem acompanhada de uma leitura analógica, comunitária, cristocêntrica, escatológica, emocional e prática. (KEENER 2018, p. 75) Ele também defende que a leitura experiencial é inevitável, desejável e em última instância, bíblica. (KEENER 2018, pp. 76-84)

O pastor César Moisés Carvalho subscreve o pensamento do Robert Menzies ao dizer que “para o pentecostal, a ‘teologia, a experiência e o comportamento estão interligados’, diz Robert Menzies, e ‘o que cremos é impactado pela experiência, mas também a orienta.” Por isso, Moisés conclui: “muito embora as pessoas relacionem o acontecimento da Escola Bíblica Betel, como marco do Moderno Movimento Pentecostal, vale lembrar que as manifestações antecedem, em muito tempo, tal ocorrência. Por isso, a explicação sociológica nunca poderá responder satisfatoriamente a questão teológica envolvendo o pentecostalismo.” (CARVALHO 2017, p. 240)

Em nono lugar, a hermenêutica pentecostal tem como principal objeto de estudo de Lucas-Atos, no entanto, não se limita a estes livros da Bíblia. Sendo assim, nossa hermenêutica é holística e interessada em relacionar-se bem com toda a Escritura e não somente uma parte dela. Ou como dirá Gutierres, “não somos apenas lucanos, mas também paulinos, joaninos, mateanos, etc. A hermenêutica pentecostal não lucaniza as Escrituras. Respeitamos cada autor nos seus próprios termos. Toda a Escritura é inspirada para ensinar. Toda ela. Não apenas sua parte epistolar. O pentecostalismo resgata a pneumatologia holística, a pneumatologia do poder e da frutificação, do carisma e do caráter. (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 41)

Sobre a lucanização, Gutierres observa que a hermenêutica pentecostal não lê a pneumatologia lucana nos escritos joaninos, paulinos, petrinos e mateanos, desta forma, ela evita de cair no extremo oposto da pneumatologia reformada, anglicana ou católica, e lembra que a pneumatologia paulina não é a única existente. (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 48)

Em décimo lugar, a hermenêutica pentecostal não rompe com a hermenêutica recente dos evangélicos, antes é um aperfeiçoamento desta. Os intérpretes pentecostais têm contribuído de forma sólida e significativa para o mundo acadêmico teológico. Achamos nas últimas décadas, o caminho de nossa hermenêutica e método teológico, muito embora isso esteja ainda se desenvolvendo no Brasil. Sendo assim, estamos contribuindo com o resgate da pneumatologia lucana, que, diferentemente da paulina, enfatiza o papel missiológico da igreja através do revestimento de poder. (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 46) Sendo assim, nossa hermenêutica não rompe com a hermenêutica clássica, mas se propõe a aperfeiçoá-la. (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 71)

Diferente, mas complementar

É importantíssimo que nós pentecostais entendamos de uma vez por todas, que a teologia lucana é diferente da paulina, no entanto, precisamos esclarecer o que isso significa ou não. Mas antes, façamos uma breve recapitulação histórica:

Há algumas décadas, Gordon Fee fez críticas simpáticas em sua obra Gospel and Spirit aos distintivos pentecostais, argumentando que a hermenêutica dos pentecostais é instável pois o livro de Atos é uma descrição de eventos históricos que não podem ser usados como base para uma teologia normativa, a menos que estejamos dispostos a escolher os líderes da igreja por sorteio, vender todas as nossas posses e várias outras questões. [11]

Ou seja, aquilo que é normativo e o que não é no livro de Atos é muito instável na teologia pentecostal. Segundo Fee, para ser normativo, os pentecostais devem demonstrar como Lucas estabelece um padrão nos vários episódios citados e não meramente a repetição deles. E como ele não vê essa conexão, acabou rejeitando os distintivos da teologia pentecostal clássica, muito embora veja a experiência pentecostal como genuína, confundindo o dom pentecostal com conversão.

No entanto, de acordo com Robert Menzies “Quando o dom pentecostal é confundido com conversão, esse foco missiológico (e eu acrescentaria, Lucano) está perdido.” (R. MENZIES 1991, p. 235)

Um outro argumento principal de Fee é que os escritores do Novo Testamento apresentam uniformemente o dom do Espírito como o principal elemento de iniciação de conversão. Para Menzies, os artigos publicados por Fee por mais dolorosos que fossem, serviram para um propósito valioso: desafiaram os pentecostais a aceitarem as questões novas levantadas por seus irmãos não pentecostais e que não podiam mais confiar nos métodos interpretativos do movimento de santidade do século XIX. (R. MENZIES 1991, p. 237)

Um cenário de esperança começou a surgir com a publicação de uma obra importantíssima do teólogo canadense Roger Stronstad em 1984.

O teólogo assembleiano Gutierres afirma que “a teologia pentecostal, sem exagero, é outra após o trabalho magistral de Stronstad.” (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 44) Menzies também compartilha desse entendimento. Para ele, a obra Teologia Carismática de São Lucas (CPAD) marca uma mudança fundamental no pensamento pentecostal: “A tese central de Stronstad é que Lucas é um teólogo por direito próprio e que sua perspectiva sobre o Espírito é diferente – embora complementar – à de Paulo. Meu próprio estudo da pneumatologia de Lucas corrobora os achados de Stronstad.

Nos capítulos anteriores, argumentei que, diferentemente de Paulo, que frequentemente fala da dimensão soteriológica da obra do Espírito, Lucas nunca atribui funções soteriológicas ao Espírito. Além disso, sua narrativa pressupõe uma pneumatologia que exclui essa dimensão (por exemplo, Lc 11,13; Atos 8.4-17; 19,1-7). Para colocar de maneira positiva, Lucas descreve o dom do Espírito exclusivamente como carismático (ou, mais especificamente, como profético) como fonte de poder para um testemunho eficaz. A narrativa lucana, portanto, reflete mais do que simplesmente uma agenda ou ênfase: a pneumatologia de Lucas é diferente de, embora complementar à de Paulo.” (R. MENZIES 1991, pp. 237,238)

Alguns poucos pentecostais aqui do Brasil se incomodaram com o uso do termo distinção, e alguns até desonestamente, associaram a abordagem de Stronstad ao liberalismo teológico, algo que no mínimo, é uma postura desonesta, tendo em vista que o conceito de teologias distintas entre Paulo e Lucas pode ser rastreado em escritos como o de teólogo suíço Eduard Schweizer que embora não fosse pentecostal apresenta a pneumatologia de Paulo como distinta da Lucas, mas complementar em um artigo intitulado: Espírito de Poder: A Uniformidade e a Diversidade do Conceito do Espírito Santo no Novo Testamento.” (SIQUEIRA, O Espírito e a Palavra 2019, p. 51) Conforme os anos foram se passando, ganhamos outra sublime obra que aborda essa questão: “Fundamentos da Narrativa Teológica de São Lucas” (Carisma) do teólogo I. Howard Marshal que em outras obras reconheceu a rica diversidade da Bíblia em especial do Novo Testamento e se propôs a reconciliá-la na obra “Teologia do Novo Testamento- diversos testemunhos em um só evangelho.” (Vida Nova) Inclusive, Marshall foi o orientador do doutorado do Robert P. Menzies. (SIQUEIRA, Revestidos de Poder 2018, p. 100) O próprio Menzies afirma que há mais de um século Herman Gunkel e muitos outros recentes estudiosos do Novo Testamento como E. Schweizer, D. Hill, G. Haya-Prats e M. Turner destacaram o caráter distintivo da pneumatologia de Lucas. (R. MENZIES 1991, p. 239)

Outro autor que tem contribuído para esse assunto é o James Shelton. Ele também é crítico quanto à paulinização dos escritos de Lucas, quando diz que as “perspectivas de Lucas sobre o Espírito Santo, por exemplo, não deveriam ser indiscriminadamente interpretadas à luz da apresentação de Paulo sobre o Espírito Santo (ou vice-versa), porque eles geralmente abordam diferentes temas concernentes ao Espírito.” (SHELTON 2018, pp. 11,12) Shelton semelhantemente aos pentecostais aqui citados, faz um bom uso da crítica da redação e acredita que essa ferramenta pode oferecer uma solução para o atual debate pneumatológico. (SHELTON 2018, pp. 20,24)

Ele tem feito um bom trabalho na análise das distinções pneumatológicas nos Evangelhos. (SHELTON 2018, pp. 21,22) e corrobora com o entendimento de que existem algumas diferenças bem profundas entre a pneumatologia lucana e paulina. (SHELTON 2018, p. 25)

Menzies ainda responde às principais objeções que negam a distinção teológica entre Lucas e Paulo: “Dois pressupostos comuns têm inibido muitos evangélicos não-pentecostais de considerar o caráter distintivo da pneumatologia. O primeiro pressuposto está associado à inspiração das Escrituras, o segundo decorre da convicção da maioria dos evangélicos de que Lucas viajou com Paulo. Vou abordar a objeção teológica primeiro e depois passar para a histórica. Supõe-se frequentemente que, uma vez que o Espírito Santo inspirou cada um dos vários autores do Novo Testamento, todos devem falar com uma só voz. Ou seja, cada autor bíblico deve compartilhar a mesma perspectiva teológica.

Assim, falar da pneumatologia distintiva de Lucas é questionar o caráter divino e autoritário das Escrituras. Contudo, uma visão evangélica ou conservadora das Escrituras exige essa visão? Em seu útil artigo, ‘Uma abordagem evangélica para a “Crítica teológica”, I. Howard Marshall ressalta que uma doutrina conservadora das Escrituras assume que “as Escrituras como um todo são harmoniosas “. No entanto, ele observa que essa suposição não descarta as diferenças teológicas entre vários autores bíblicos. Pelo contrário, sugere que as diferenças existentes são ‘diferenças de desenvolvimento harmonioso, em vez de contradições irreconciliáveis. Sugiro, portanto, que uma visão elevada das Escrituras exige, não que Lucas e Paulo tenham a mesma perspectiva pneumatológica, mas que a pneumatologia distintiva de Lucas seja finalmente reconciliável com a de Paulo, e que ambas as perspectivas possam ser vistas como contribuindo para um processo harmonioso de desenvolvimento.

É imperativo notar que, quando falo da pneumatologia distintiva de Lucas, não estou afirmando que a perspectiva de Lucas é irreconciliável com a de Paulo. Pelo contrário, eu sugeriria que as pneumatologias de Lucas e Paulo são diferentes, mas compatíveis; e que as diferenças não devem ser confusas, pois ambas as perspectivas oferecem uma visão do trabalho dinâmico do Espírito Santo. Claramente Paulo tem uma visão mais desenvolvida, pois ele vê toda a riqueza da obra do Espírito. Ele nos ajuda a entender que o Espírito é a fonte da fé cristã e da justiça purificadora (1 Cor. 6.11; Rom. 15.16) (Gál. 5.5, 16-26; Rm. 2.29, 8.1-17, 14.17) e íntima comunhão com Deus (Gal. 4.6; Rm. 8.14-17), bem como a fonte de poder para a missão (Rm 15.18-19; Fp 1.18-19). Paulo atesta tanto os aspectos soteriológicos quanto as dimensões proféticas (e também carismáticas) da obra do Espírito. A perspectiva de Lucas é menos desenvolvida e mais limitada.

Ele presta testemunho apenas da dimensão profética da obra do Espírito e, portanto, nos dá um vislumbre de apenas uma parte da visão mais ampla de Paulo. No entanto, Lucas, como Paulo, tem uma importante contribuição a dar. Ele nos chama a reconhecer que a igreja, em virtude de receber o dom pentecostal, é uma comunidade profética habilitada para uma tarefa missionária. Em suma, não são apenas compatíveis as perspectivas pneumatológicas de Lucas e Paulo, elas são complementares: ambas representam importantes contribuições para uma teologia bíblica holística e harmoniosa do Espírito. Isso nos leva a outro ponto importante: se as diferenças entre as perspectivas de Lucas e Paulo não são reconhecidas, a riqueza total do testemunho bíblico não pode ser compreendida.

É por isso que é trágico quando, em nome da inspiração bíblica, a diversidade teológica legítima dentro do cânon é repudiada. Devemos examinar os textos bíblicos e ser sensíveis à diversidade teológica existente, pois a harmonização, quando imposta ao texto, exige um preço alto. No caso de Lucas e Paulo, esse preço é o suporte bíblico para uma posição pentecostal no batismo no Espírito. Os evangélicos geralmente identificam Lucas como alguém que viajou com Paulo. Sendo esse o caso, é compreensível que alguns possam estar inclinados a questionar se a pneumatologia de Lucas realmente poderia ser diferente da de Paulo. Teria sido possível para Lucas permanecer sem ser influenciado pela perspectiva soteriológica do apóstolo sobre o Espírito?

Eu sugeriria que um exame completo de Lucas-Atos revele que foi exatamente isso que aconteceu. Vários fatores indicam que essa conclusão não deve nos surpreender, embora Lucas, como viajante e companheiro de Paulo, provavelmente passou um tempo considerável com o apóstolo.

Primeiro, é geralmente reconhecido que Lucas não estava familiarizado com nenhuma das epístolas de Paulo. Portanto, o contato de Lucas com a teologia de Paulo provavelmente se limitou a conversas pessoais ou fontes secundárias (orais ou escritas). Também é bastante provável que Lucas não conhecesse as epístolas de Paulo porque elas ainda não eram amplamente acessíveis ou reconhecidas em setores não-paulinos da igreja. Isso sugere que a perspectiva de Paulo ainda não havia influenciado significativamente esses elementos mais amplos e não paulinos da igreja primitiva.

Segundo, já que outros aspectos da teologia de Paulo não influenciaram significativamente Lucas, minha sugestão é ainda mais credível. Um exemplo da independência teológica de Lucas em relação a Paulo (ou seja, que ele não imita servilmente Paulo) pode ser encontrado em sua justificativa para a salvação. Embora Lucas enfatize que a salvação é encontrada em Jesus porque ele é ‘Senhor e Messias, ele não desenvolve de maneira semelhante a Paulo todas as implicações da cruz como meio de salvação. Novamente, vemos que as perspectivas de Lucas e Paulo complementam um ao outro: juntos, eles nos levam a uma compreensão mais profunda e completa da verdade.

Terceiro, os resumos de Lucas da pregação de Paulo – geralmente vistos como representações precisas do evangelho de Paulo por aqueles que afirmam que Lucas viajou com Paulo – não contêm vestígios da pneumatologia soteriológica de Paulo. Isso indica que se, como é provavelmente o caso, Lucas ouviu Paulo pregar ou entrar em discussões com o apóstolo e, assim, chegar a um entendimento preciso de seu evangelho, é inteiramente possível, e provável que ele o tenha feito sem chegar a um acordo com a perspectiva pneumatológica mais completa de Paulo.

Esses pontos são oferecidos como um desafio para deixar o texto de Lucas-Atos falar por si. Seja o que for que pensamos sobre esses pontos específicos, um fato é inegável: as suposições sobre a extensão em que Lucas foi influenciado por Paulo devem ser julgadas à luz da evidência que temos à nossa disposição, não com especulações do que poderia ter sido.” (R. MENZIES 1991, pp. 240-242)

Baseado nisso, gostaríamos de fazer os seguintes apontamentos:

1 – A Pneumatologia de Lucas é diferente da de Paulo. E isso se dá porque a teologia (não somente a ênfase) de cada um é diferente.

2 – Por outro lado, essa distinção não é contraditória, mas complementar. Isto é, Paulo e Lucas se complementam. Nas palavras de Palma, “complementariedade, não competição ou contradição, normalmente caracteriza diferenças aparentemente irreconciliáveis.” (PALMA 2011, p. 11)

3 – Naturalmente, isto não significa dizer que não haja pontos de convergência (em comum) entre os dois.

4 – As diferenças teológicas fazem parte do desenvolvimento harmonioso ao invés de contradições irreconhecíveis. Ou seja, elas podem ser reconciliáveis, mas somente depois de analisadas em seus próprios termos. Inclusive, próprio Menzies fez esse trabalho recentemente em seu livro Glossolalia (pp. 144-159) com relação à questão das línguas. Anthony D. Palma reforça: “O que Lucas diz e ensina precisa ser alocado junto com outros escritos bíblicos e não pode ser acusado de ser contrário a eles. Os escritores bíblicos complementam-se e não contradizem uns aos outros. Um procedimento adequado é primeiro determinar o que um escritor ou um escrito em particular diz, e então correlacionar com outras partes das Escrituras.” (PALMA 2011, p. 21)

5 – Isto também significa que os termos comuns entre Paulo e Lucas, nem sempre apontam para a mesma direção. Por exemplo, para Lucas, a língua é sinal do Batismo no Espírito Santo. Para Paulo, a terminologia é usada para se referir ao dom de variedade e como sinal para o incrédulo. Paulo fala do Batismo no Espírito (ou pelo Espírito) na conversão uma única vez, enquanto que Lucas fala de um batismo logicamente distinto da conversão (3x). Para Lucas, ser cheio do Espírito significa manifestar carismas e demonstrações externas, proféticas e poderosas do Espírito (9x). Para Paulo, a ética é o que caracteriza a plenitude do Espírito. Paulo coloca como crucial a observação do aspecto do caráter na ordenação de pessoas ao Ministério, enquanto que Lucas, observa mais o aspecto carismático. Segundo Anthony D. Palma “Já que a Bíblia não é uma obra de teologia dogmática ou sistemática, diferentes escritores bíblicos por vezes podem usar terminologia similar, mas com significados variados. Por exemplo, a expressão ‘receber o Espírito’ pode ter diferentes nuances em Lucas, Paulo, João, etc.” (PALMA 2011, p. 10) Esta tarefa é de suma importância porque “diferentes escritores bíblicos frequentemente apresentam ênfases diferentes. O Evangelho de João, por exemplo, destaca a deidade de Cristo; Paulo enfatiza a justificação pela fé; Lucas (tanto em seu Evangelho quanto no livro de Atos) se concentra no aspecto dinâmico do ministério do Espírito.” (PALMA 2011, 10)

6 – Mesmo que as crenças de Paulo ou qualquer outro personagem bíblico estejam dentro do corpo escriturístico Lucano, ainda assim elas estão dentro da seleção teológica de Lucas. A Teologia Lucana recebe influências de várias fontes (inclusive apostólica) mas como produto final e no todo, é uma contribuição singular e distinta da de Paulo.

7 – A distinção teológica entre ambos os escritores diz respeito apenas ao que eles produziram por escrito. Isto significa dizer que não estamos ensinando que Paulo não cria no que Lucas cria e vise versa.

Conclusão: Nesse novo contexto em que estamos inseridos, somos vocacionados pelas demandas do nosso tempo para defender a nossa fé de forma sólida, sem ser intolerante e inflexível com nossos irmãos evangélicos. Portanto, devemos estar por dentro das plataformas emergentes elucidadas pelos apologistas do moderno movimento pentecostal.

Que possamos fazer bom uso dessas diretrizes aqui estabelecidas que estão abertas à crítica e que não pretendem esgotar o assunto ou lidar com todas as problemáticas envolvidas. Também fiquemos cientes de que qualquer método possui suas próprias limitações e que, portanto, devem serem submetidos ao teste do aperfeiçoamento.

Assim, os distintivos pneumatológicos do pentecostalismo estarão salvaguardados e por conseguinte, a nossa identidade teológica está mantida, deixando uma contribuição singular para o Evangelicalismo como um todo. Que Deus abençoe a todos!

Bibliografia
CARVALHO, Cesar Moisés. Pentecostalismo e Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: CPAD, 2017.
GONÇALVES, José. Lucas- O Evangelho de Jesus, o homem perfeito. Rio de Janeiro: CPAD, 2015.
HORTON, Stanley M. Teologia Sistemática. Rio de Janeiro: CPAD, 2005.
KEENER, Craig S. A Hermenêutica do Espírito. São Paulo: Vida Nova, 2018.
MCGEE, Gary. Evidência Inicial. Natal: Carisma, 2019.
MENZIES, Robert. Empowered for Witness The Spirit in Luke-Acts. Sheffield Academic Press, 1991.
MENZIES, Robert P. Pentecostes- essa história é a nossa história. Rio de Janeiro: CPAD, 2016.
PALMA, Anthony D. O Batismo no Espírito Santo e com Fogo. Rio de Janeiro: CPAD, 2011.
SHELTON, James. Poderoso em Palavras e Obras. Natal: Carisma, 2018.
SIQUEIRA, Gutierres Fernandes. O Espírito e a Palavra. Rio de Janeiro: CPAD, 2019.
—. Revestidos de Poder. Rio de Janeiro: CPAD, 2018.
STRONSTAD, Roger. A Teologia Carismática de Lucas. Rio de Janeiro: CPAD, 2018.
—. Teologia Lucana sob Exame. Natal: Carisma, 2018.

[1] Abracei a ideia de que o falar em línguas era a evidência normal do Batismo no Espírito Santo, mas não normativa.
[2] A doutrina da Subsequência e da Evidência Inicial
[3] O batismo no Espírito Santo pode acontecer no mesmo momento em que a pessoa é convertida, no entanto, são duas atividades acontecendo num único momento e não uma.
[4] Johns explica que a inadequação da abordagem padrão sobre as línguas evidenciais é que isto é um simples raciocínio indutivo, e para este, quanto mais casos forem observados, melhor, mas há apenas três casos de apoio válidos, no entanto, esta abordagem é vulnerável em vários pontos pois há um número relativamente pequeno a observar e além disso, o método é inconsistente, pois há muitas outras coisas que se repetem em Atos que não foram usados pelos pentecostais clássicos de maneira doutrinária (MCGEE 2019, p. 196)
[5] Parece que Menzies não crê mais nesse ponto. Em um livro mais recente ele faz o seguinte comentário: “… de acordo com Lucas, o falar em línguas está disponível a todos? Nos livros e artigos anteriores escritos, sugeri que Lucas não trata dessa questão conscientemente. (…) Agora, acredito que meu julgamento sobre Lucas foi um pouco precipitado. (R. P. MENZIES 2016, p. 70)
[6] Segundo Johns, a teologia bíblica primeiro apresentará a teologia de um autor do Novo Testamento em seus próprios termos, categorias e formas de pensamento, de modo que nenhum autor bíblico se sobrepõe a outro, nem que sua estrutura teológica como matriz, da qual todos os outros autores devem se ajustar. ( (MCGEE 2019, p. 198)
[7] Segundo Johns a teologia sistemática constrói uma descrição unificada da verdade de Deus a partir de expectativas filosóficas e teológicas particulares fazendo com que versículos individuais da Bíblia fossem escritos por um único escritor humano , para o mesmo público e esse não é melhor caminho visto que a natureza dos textos bíblicos torna impossível um salto imediato de versículos individuais para uma doutrina sistemática. (MCGEE 2019, p. 197)
[8] O próprio Menzies faz uso da crítica da redação a fim de demonstrar como Lucas remodelou e editou habilmente a profecia de Joel 2 no livro de Atos. (R. P. MENZIES 2016, 32)
[9] É preciso ter cuidado com o que se lê acerca da crítica da redação, pois muitos críticos mais racionalistas foram longe demais com suas conclusões, ensinando inclusive que os evangelistas inventaram histórias sobre e de Jesus. No entanto, o problema não está com o método em si, mas com o que se faz com ele.
[10] Para mais informações, consulte (HORTON 2005, pp. 58-61)
[11] Fee se assemelha a outros críticos do Pentecostalismo que alegam que as experiências no livro de Atos são descritivas, não prescritivas. Anthony D. Palma responde essa questão da seguinte forma: “Uma objeção frequentemente levantada por críticos é que se os pentecostais insistem em ‘precedentes históricos’ para uma experiência pós-conversão do Espírito, deveriam segui-los consistentemente, por exemplo, vendendo todos os seus recursos financeiros e dividindo tudo com os irmãos. Mas em nenhum momento a Igreja Primitiva recebeu ordem de Deus ou agiu por ordem dEle para fazer isso, nem existe qualquer padrão adotado por ela com relação a isso. Essas eram atividades que as pessoas decidiram realizar e faziam por iniciativa própria. No entanto, ser cheio do Espírito é uma atividade iniciada divinamente e é, por essa razão, comandada por Deus.” (PALMA 2011, p. 13)

Everton Edvaldo é recifense, assembleiano, estudante de teologia, escritor e editor do Blog: Esquina da Teologia Pentecostal. Administrador das páginas: Esquina da Teologia Pentecostal (Facebook) e @esquinadateologia (Instagram).

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