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opinião

Bolsonaro e a diferença entre um servidor público e um engenheiro social

Como julgá-lo segundo Isaiah Berlin e o Bom Político.

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Jair Bolsonaro na reunião com ministros (Marcos Corrêa / PR)

O que é o bom político? Como podemos julgar o momento atual, o presidente Bolsonaro e a atuação de nossos muitos representantes? Como interpretar este cenário crivado de ódios partidários, disputas comezinhas, ressentimentos e traições?

O que é boa política e qual é a diferença entre ela e o auto interesse sórdido que coloca interesses particulares em primeiro lugar acima da vontade do povo? Para saber julgar o cenário nacional temos que também entender o que define o bom político.

Primeiro precisamos sair da discussão viciada que culpa a corrupção por tudo, reduzindo o ideal político apenas a integridade moral. Não meter a mão no cofre político não é virtude. É política 1.0, o mínimo que se espera de um servidor público. O bom político tem que demonstrar outras qualidades.

O filósofo político Isaiah Berlin faz referência a uma capacidade essencial que o político excepcional demonstra e ele chama isto de “julgamento político”. Políticos do bem ou do mal se destacam na vida pública por causa desta habilidade, segundo Berlin.

O que é isto? É um conhecimento específico? Seria um conhecimento da teoria da social ou ciência política, como alguns filósofos do passado parecem inferir? Conhecer teorias sobre o funcionamento político da sociedade capacita o político? Ou seria necessário um conhecimento mais técnico? Fazendo uma analogia com o conhecimento médico de anatomia Berlin pergunta se um conhecimento técnico pode prescindir de uma percepção prática. Ele resolve que não. O médico pode saber tudo de anatomia, mas se não tem conhecimento prático dela não é capaz de deter doenças.

Seja os pensadores tecnocratas como Fourier ou Comte, ou os dogmáticos como Hegel e Marx, todos incorrem no mesmo erro, diz Berlin; eles não sabem como a verdadeira percepção sobre a natureza da sociedade que inspira o político eficaz é construída. Perdidos no teoricismo dos iluministas do século XVIII, intelectuais, cientistas políticos e até jornalistas perderam a capacidade de identificar a realidade, separando-a da mera abstração, de princípios, das descrições “anatômicas” e meta-teóricas, e principalmente das utopias dos romantismos e das projeções matemáticas.

Este conhecimento adquirido formalmente louvado pelos iluministas prescindiria de outras habilidades, e de maneira científica e técnica conduziria o político a tomar decisões acertadas. O problema é que políticos desta natureza são na verdade engenheiros sociais e não servidores do povo. Segundo Berlin, esta educação política tecnicista não forma o bom político. O socialismo-científico de Lenin e Stalin por exemplo gerou líderes de seita, fanáticos e indiferentes ao povo, ao invés de técnicos capazes.

Aristóteles ao falar da capacidade política se refere a uma qualidade, a φρόνησῐς  ou phrónēsis. A tradução correta para esta palavra não é “sabedoria” como alguns dicionários indicam, mas sim “razão prática”. Ele fala de uma capacidade de raciocínio ou intuição prática, que inclui a deliberação e a síntese, não apenas a simples análise do problema. Esta capacidade permite ao político intuir as implicações concretas das decisões que toma e a reação do povo.

Para Berlin, o político que possui esta qualidade calça os sapatos do povo, e sabe sentir como as decisões vão afetar de maneira concreta as pessoas que está pretendendo guiar.

Esta habilidade é contextual, não é um princípio que se aplica de maneira geral. Ela revê cada momento social pelo que é.  Esta capacidade política não é mágica ou mística tampouco, é uma espécie de percepção empírica da realidade social.

Ela implica na “integração de uma quantidade vasta de informações em constante mudança, reconhecendo nelas possibilidades passadas e futuras, e no processo de convertê-las em experiência”. Ela implica em discernir o que o político pode fazer pelos outros e o que os outros podem fazer por si mesmos. Isaiah Berlin compara os políticos, assim, aos bons escritores, que demonstram uma percepção extraordinária para a textura da vida, que são capazes de colocar em palavras o que outros apenas intuem.

Aplicando isto a nosso contexto, só posso pensar que o Brasil é um país dominado hoje por pessoas sem a menor phrónēsis. A arrogância e distanciamento da realidade dos homens públicos brasileiros é coisa de ficção de distopia. Políticos como Dória, como o governador do Pará Helder Barbalho, como Wilson Witzel, ou até os ministros do STF que estendem a sua tenda de poder para acampar todas as instâncias decisivas do país não são meros servidores públicos, são engenheiros sociais segundo a tradição de Robespierre e Himmler.

Nossos homens de mídia não ficam atrás. Vi o repórter do Antagonista Claudio Dantas desdenhando o presidente. Bolsonaro cruzou a avenida, no dia 7 de maio, para ir ao prédio do STF com um grupo de empresários e ministros. Sua intenção era fazer um apelo desesperado ao órgão que lhe tirou completamente a possibilidade de tomar decisões pelo país na questão pandemia. A economia do país está agonizando, era seu apelo.

Depois da liberação do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril fica mais clara ainda a preocupação de Bolsonaro com o povo e como o sentimento do povo é sem dúvida o principal norteador de suas decisões políticas. Bolsonaro sabe que o povo brasileiro quer liberdade para trabalhar mais do que quer comida de graça. Sabe que o brasileiro em geral se educou politicamente, sabe como funciona uma democracia, e não se deixa mais enganar por discursos populistas vazios. O Brasil quer um país que funcione. E está disposto a lutar por ele.

Mas jornalistas como Claudio Dantas, Felipe Moura Brasil, e outros que insistem ainda na narrativa da prevaricação presidencial que justifica um possível impeachment, são frutos do iluminismo apesar de se posicionarem à direta do espectro político. A sua teoria sobre o que seja a “boa política” não inclui a vida prática. Claudio Dantas quando desdenha o desespero do presidente, o emocionalismo com que se comunica, os palavrões que usa, desdenha também o desespero do povo que o presidente claramente representa.

Bolsonaro, nos últimos dois meses, foi obrigado pelo STF e pelo Congresso a reduzir a sua participação pública a um espetáculo teatral diário. Isto incomoda os teóricos profundamente. Mas as provocações teatrais de Bolsonaro não são fruto de uma personalidade histriônica, são ações políticas. O presidente, roubado de suas funções executivas constitucionais por um congresso que se recusa a colocar em votação medidas a ele enviadas, e por um STF que veta suas ordens, continua, no entanto, liderando o país. Lidera agora através de uma espécie de teatro da liberdade que encena no palco do Planalto.

Num país onde engenheiros sociais se esmeram em criar medidas para controlar onde o povo vai, como vai, o que usa, o que diz e até o que pensa, o presidente ainda insiste em ser livre.

Insiste em manifestar publicamente o que ele sabe ser a percepção do povo: as medidas sanitárias adotadas pelos tiranos que mantém o país trancado à sete chaves, tem mais a ver com a ambição pessoal destes homens do que com a saúde da população.

Aristóteles não daria a Bolsonaro o título de homem magnânimo, lhe falta finesse. Ele se vinga, se entorta, se irrita, não é comedido o bastante para o grego que admirava uma personalidade mais moderada. Mas acredito que ambos, Aristóteles e Berlin com certeza reconheceriam nele um político de verdade.

Ficou claro no vídeo da reunião ministerial que a empatia com a dor do povo está por trás de toda a frustração que ele manifesta. O que lhe falta em moderação lhe sobra em coragem.

E por mais absurdo que pareça à classe intelectual brasileira, de acordo com Berlin, fica claro que o presidente é um bom político. O que não lhe falta é o sentimento de empatia e a visão global, que segundo o filósofo, separa o servidor público de um perigoso engenheiro social.[1]

[1] Artigo inspirado no clássico ensaio de Isaiah Berlin: “On Political Judgement” nas reflexões de Aristóteles em Política e Ética de Nicômano e na aula do Dr. Steven B. Smith de Yale.

Trabalhou como missionária na Amazônia e no Pacífico Sul. É Mestre em Divindade pela Universidade de Yale, Estados Unidos, e doutoranda em história e teologia política na Universidade de St. Andrews, Escócia. É autora dos livros Chamado Radical e Tem Alguém Aí Em Cima?, publicados pela Editora Ultimato. É casada com Reinaldo Ribeiro e mãe de três filhos.

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