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opinião

Yago Martins e a “dispensável” liberdade religiosa

O grande problema da humanidade sempre foi a confusão de competência entre o Estado e a igreja.

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Yago Martins e MBL (Reprodução)

“Eu preferia um presidente que fosse menos seguro para nós como comunidade religiosa, mas que fosse melhor para a sociedade de forma geral, do que as coisas como estão agora. Eu preferia ter a minha liberdade religiosa sacrificada em algum nível para ver menos gente morrendo, menos miséria à nossa volta…” – Yago Martins

Tive a temeridade de dizer no Twitter que o Yago Martins, conhecido pastor do Youtube, tem o interior vermelho.  Tenho de explicar primeiro que detesto estes xingamentos rotulantes. Hoje em dia todo mundo que não apoia o Bolsonaro é comunista para os devotos. Não sou devota de Bolsonaro e acredito que  não estou repetindo um chavão gratuito.

Mas a associação foi inevitável depois que ouvi a declaração de Yago ao MBL, que reproduzi parcialmente acima. Resolvi escrever este texto crítico de sua posição,  ao considerar que o rapaz tem um número grande de seguidores jovens que levam a sua palavra à sério e que o respeitam por ser um cristão de direita.

Yago é corajoso, empreendedor, não sei se é bom pastor, porque é preciso mais do que cérebro para que alguém seja um bom pastor. Como diz o homem de lata, é preciso ter um coração. Tendo lido a introdução de seu livro sobre os mendigos, li apenas a intro, que fique claro, pode ser o que livro melhore à partir daí, mas me deu a impressão de que, no quesito coração, a nota do rapaz não é dez.

Agora vamos ao porquê da minha desconfiança de que o rapaz ainda tem um interior encarnado, como se diz no Nordeste. Para isto vou me servir de W.E. Hocking, importante filósofo político do século passado com quem estou tendo um romance. Hocking  já morreu, viu, se você entendeu este “romance” literalmente, não é. Estou dizendo que tenho grande apreciação por ele e que frequentemente vou para cama, aí sim literalmente, com ele. [1]

Hocking diz que há dois instrumentos ou forças institucionais que ajudam o ser humano a se “formar”, ou seja, se entender, se desenvolver como agente no espaço social. O estado, e por estado entenda-se não só o aparato estatal do governo, mas as formas institucionais afirmadas pela sociedade e sancionadas por ela, e a igreja.

As duas forças formadoras são de certa maneira metafísicas. A natureza metafísica da igreja é obvia. E segundo Hocking, a “cooperação entre o estado e a pessoa torna possível para  cada indivíduo a materialização de sua agência e ideias, a imortalidade dentro da história humana”, o que não deixa de ser uma concepção espiritual.

Estas duas comunidades são os “espelhos da natureza humana” no entender de Hocking, mas um não prescinde do outro. A sociedade/estado “projeta nosso destino na história humana” e a igreja nos conduz além dela, ela fala de nosso ser integral em coerência com o universo. O estado interpreta nossa relação com o lugar e o agora. A igreja nos dá a visão mais completa de nosso destino e de nós mesmos no universo. Ela  nos providencia “padrões de julgamento além do mero limite da lei que é o código comportamental, mas no terreno dos motivos e princípios.” Ou seja, o Estado nos coage pela lei a fazer o bem conforme nosso acordo social, e a religião  ao conectar nossa alma com o inefável, nos conduz à essência do bem.

Até aí, nada de novo, acredito que toda pessoa que se afirma direitista discerne a diferença entre estas duas competências e além disto reconhece que existe um overlapping entre elas. O caso do pecado e crime ilustra isto. Tem pecados que são crimes, mas tem crimes ou contravenções que não são pecados e pecados que não são crime.

Mas o Estado não substitui a igreja e vice-versa numa sociedade sadia. O grande problema da humanidade sempre foi a confusão de competência entre o Estado e a igreja. A apropriação da tarefa de codificar o divino pelo Estado sempre provocou tragédias.

Os grandes massacres da história foram todos realizados pelo estado que se torna deus. As tragédias se repetem desde as civilizações antigas onde os faraós e imperadores personificavam divindades e se apropriavam do direito divino para oprimir as populações, até exemplos mais recentes como a revolução francesa, quando o Estado substitui a igreja em seu papel instituidor do que é moral, tornando o certo e o errado um instrumento do poder estatal. E todos sabemos que o primeiro passo nesta direção é o cerceamento da liberdade religiosa.

E antes que eu me alongue muito vamos à lógica marxista que me levou a considerar a vermelhidão de Yago Martins. Na concepção marxista de história e sociedade, materialista,  o Estado é deus em seu próprio direito. Esta divinização do Estado como formador e dono do destino humano começa em Hegel, e é apropriada, indevidamente por Marx, mas é em Horkheimer e Ernest Bloch que ela se torna brilhante.

Horkheimer propõe que o ser humano, o trabalhador oprimido pelo poder do capital é fragmentado, isolado de sua natureza humana pela sociedade que o condena à vida reles de peça no sistema produtivo. Tudo o que pertence à consciência humana deve ser racionalizado pela via da crítica ao sistema. A verdadeira razão, para Horkheimer, é a crítica contínua do sistema opressor. Portanto, não existe nenhuma dimensão humana que não seja a econômica, e não existe racionalidade, ou consciência de humanidade fora da luta de classes.

Bloch faz mais, ele empacota a realidade mística da esperança redentora para a humanidade dentro da proposta marxista. Ou seja, ele transcendentaliza o marxismo e  “imanentiza o escaton.”[2] A influência do pensamento de Bloch é imensa na teologia cristã hoje.

Eu mesma passei um semestre inteiro estudando escatologia segundo o esquema proposto por Bloch num curso que deveria ter sido um curso teológico de escatologia e foi cooptado pela discussão política. Bloch, em seu chatíssimo “Princípio da Esperança” se apropria da teologia cristã, do mileniarismo do frei medieval Joaquim de Fiori, o mesmo que inspirou John Nelson Darby o teólogo das dispensações, e as sujeita ao serviço da proposta marxista.

Mas onde eu quero chegar? Estas ideias marxistas foram absorvidas pela nossa cultura. Viraram senso comum. E elas com facilidade se casam em nossa cabeça com outras pressuposições igualmente nocivas, como por exemplo a de considerar a religião como uma prática de foro íntimo e que, portanto, pode ser realizada em privado.

Dando à fé do rapaz o benefício da dúvida, não acredito que Yago ao dizer que prefere perder sua liberdade religiosa para ter uma sociedade melhor (?) tenha pensado em parar de orar ou concordado em  sacrificar sua devoção pessoal.

Nosso youtubista teológico favorito está fazendo uma separação entre a igreja ou religião no sentido público e a sua fé individual. Ele está adotando os termos iluministas que definem a religião como uma prática privada, o que os permite afirmar a condição humana reduzindo-a ao contexto social apenas.

Ele está adotando  as premissas de Bloch quando conclui que a sociedade pode ser “melhor” com uma política mais eficiente. É na religião de Bloch que se concebe o sistema como contendo em si mesmo a esperança transcendente.

Yago que se diz direitista, liberal ou conservador, não sei, crê que uma sociedade “melhor” pode ser concebida num contexto em que a liberdade de consciência individual é cerceada. Nós sabemos que esta hipótese já foi testada à exaustação no século passado e falhou vergonhosamente todas as vezes em todas as suas versões.

Voltando a Hocking, “aquilo que é verdade a respeito do ser humano ou se torna uma experiência funcional ou vira um nada.” O conceito de justiça ou melhora social fora da liberdade de consciência tem tanto valor quanto pelo de pulga. Não seria pedir muito, que pelo menos com base na história do século XX apenas, Yago deveria ter sido capaz de revisar a sua afirmação. A liberdade religiosa não é um luxo supérfluo, mas o último canário da mina.

Temos duas alternativas então para julgar a fala do youtuber. Ou ele não entende nada de política, nem nunca leu história, o que é difícil de acreditar considerando a sua vasta biblioteca, ou quem sabe talvez  Yago concorde com a noção marxista que recebeu nas aulas de cursinho pré-vestibular, de que a única coisa que realmente importa é o estômago cheio da “crasse trabalhadora.” Aí sim, no terreno da política vermelha  o pastor youtubiano está perfeitamente correto.

Deixo a decisão com você leitor.

[1] Todos os textos entre aspas são  traduções parafraseadas do texto literal de Hocking, no livro: W. Ernest Hocking, The Coming World Civilization (New York, NY, 1956).

[2] Esta frase de Eric Voeglin popularizada pelo comentarista americano William Buckley Jr. e  se refere ao termo teológico  o fim dos tempos, o juízo, ou a esperança final. Imanentizar o escaton que dizer tornar o juízo da história o julgamento final assim como a esperança divina numa atribuição humana.

Trabalhou como missionária na Amazônia e no Pacífico Sul. É Mestre em Divindade pela Universidade de Yale, Estados Unidos, e doutoranda em história e teologia política na Universidade de St. Andrews, Escócia. É autora dos livros Chamado Radical e Tem Alguém Aí Em Cima?, publicados pela Editora Ultimato. É casada com Reinaldo Ribeiro e mãe de três filhos.

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