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opinião

Teologia liberal infiltrada na Assembleia de Deus

Algumas considerações sobre o livro “Experiência e hermenêutica pentecostal”, publicado pela CPAD.

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Experiência e hermenêutica pentecostal.

O que o prezado leitor diria de um livro supostamente pentecostal que defendesse, por exemplo, que o relato de Atos 2 é uma “ficção historicizada” cuja redação domesticou tradições judaicas? O que pensaria se descobrisse que o mesmo livro propõe uma hermenêutica baseada na experiência pentecostal comunitária, identificada fundamentalmente com o êxtase?

Que avaliação desse mesmo livro o estimado leitor faria se soubesse que ele defende, para a interpretação bíblica, a substituição do consagrado método histórico-gramatical, resgatado pela Reforma Protestante, por um saber intuitivo, afetivo, performático, poético, pneumático e extático? O que pensaria ao ler nesse livro sobre a impossibilidade de o leitor da Bíblia acessar a intenção do autor original?

O que se poderia dizer da afirmação de que a revelação continua em nossos dias, num encontro entre o leitor e a Bíblia, mediado pelo Espírito? E que resposta mereceria a proposição de que o fiel pentecostal, em sua leitura bíblica, tem preferência pela via sensorial, e não pela via cognitiva?

Diante desse arsenal de teorias, o cristão vinculado a uma confissão de fé histórica – como é a fé pentecostal – poderia dizer, com acerto, que se trata de ideias próprias do liberalismo ou modernismo teológico. E seu espanto não seria pequeno ao descobrir que tudo isso consta do livro Experiência e hermenêutica pentecostal: reflexões e propostas para a construção de uma identidade teológica, lançado em 2018 pela Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD), editora oficial da maior denominação evangélica do nosso país.

Como cristão pentecostal e ministro do Evangelho na Assembleia de Deus, sinto-me constrangido por ter de enunciar estas considerações, mas ao mesmo tempo compelido à tarefa, tendo em vista cuidar-se de pontos fundamentais da fé cristã, cuja preservação cabe a cada um dos servos do Senhor, mas principalmente aos líderes eclesiásticos. Dito isso, prossigamos:

Referida obra, escrita pelos pastores David Mesquiati de Oliveira e Kenner R. C. Terra, destoa da tradição editoral da CPAD, algo que os próprios autores reconhecem implicitamente, por imaginarem não haver, em solo brasileiro, teologia tipicamente pentecostal antes de sua proposta (cf. Introdução, p. 17).

Basicamente, a obra escrita por Mesquiati e Kenner defende a experiência como “lugar central da tradição teológica pentecostal” (p. 17), e para isso recorre a contribuições teóricas das ciências humanas e de teólogos pentecostais estrangeiros.

Para ser bem franco, devo dizer que Experiência e hermenêutica pentecostal é um livro embebido em referenciais teóricos correspondentes a uma visão criticista da Bíblia, da teologia e da realidade, que emprega ferramentas metodológicas cujos pressupostos não são os do Cristianismo histórico e ortodoxo.

Pode-se mesmo afirmar que, em vez de ser exatamente um livro de hermenêutica bíblica, Experiência e hermenêutica pentecostal chega a ser uma obra dedicada a uma nova epistemologia cristã, por ser uma teoria do conhecimento que propõe, para o mundo pentecostal, uma forma alternativa de acesso à verdade – sua hipótese é que esse meio alternativo seria o êxtase.

A obra, contendo 224 páginas, está distribuída em dez capítulos, além de Introdução e Conclusão:

  1. A Experiência Pentecostal como Lugar Hermenêutico;
  2. Leitura Semiótica para uma Hermenêutica Pentecostal;
  3. A Leitura Bíblica Pentecostal e a Experiência do Espírito;
  4. O Espírito Santo na Reforma e no Pentecostalismo;
  5. Espírito, Hermenêutica e Reforma Radical;
  6. Afinidades entre a Reforma Radical e o Pentecostalismo;
  7. A Reforma e o Pentecostalismo como Respostas ao seu Tempo;
  8. Poimênica Pentecostal: A Vida Pastoral da Igreja;
  9. Missão e Pentecostalismo a partir da Pentecostalidade;
  10. Hermenêutica do Espírito: Atos 2 e o Empoderamento para a Ação Pentecostal.

Apesar do autoproclamado ineditismo, o livro se aproxima da obra Pentecostalismo e pós-modernidade: quando a experiência sobrepõe-se à teologia, editado pela própria CPAD e escrito por César Moisés Carvalho, então responsável pelo setor de educação cristã da Casa Publicadora. Esse livro já representara uma exceção no catálogo da editora, em razão de uma perspectiva criticista, demasiado influenciada por teorias importadas das ciências humanas e vocalizadora de uma percepção ressentida e negativa quanto à teologia herdeira da Reforma Protestante.

De fato, o pastor César Moisés compartilha percepções muito similares a Mesquiati e Kenner em relação a áreas como hermenêutica, pentecostalismo, cosmovisão e pós-modernidade, e, depois de se tornar responsável pelo setor de livros da CPAD, lhes concedeu espaço para publicação do livro de que ora se cuida.

Os marcos teóricos deixam evidências importantes, não somente sobre a formação intelectual dos autores, mas também sobre sua filiação ideológica, aproximando-os perigosamente do liberalismo teológico e do progressismo, o que permite supor sua identificação com aquilo que se pode chamar de “esquerda teológica” e, mais particularmente, com aquilo que neste artigo se propõe denominar “pentecostalismo liberal-esquerdista”.

Cabe destacar que a refutação dos autores ao método histórico-gramatical – por eles considerado excessivamente adstrito à intenção do autor original – contradita a Declaração de Fé das Assembleias de Deus no Brasil (Cap. 1: Sobre as Sagradas Escrituras; Item 6: Mensagem) e constitui um risco muito grande às bases de fé.

Os autores dizem expressamente que sua proposta teológica passa pela releitura de “conceitos caros da teologia” (Introdução, p. 18), e que a teologia pentecostal, em sua concepção, deve discutir “desde as questões mais básicas da fé cristã até as metodologias teológicas” (Introdução, p. 18). Há de se ter fundado receio diante de afirmações como estas, notadamente quando se tem ciência do conjunto da obra, que consiste num libelo contra os fundamentos da tradição protestante.

A título ilustrativo do caráter do livro, algumas passagens merecem registro:

  • “Nós entendemos que as demais propostas teológicas produzidas na literatura brasileira, mesmo aquelas escritas por pentecostais, ainda devem, em vários níveis, a caminhos metodológicos e referenciais teóricos tipicamente modernos, o que ainda não permitia afirmarmos ser teologia pentecostal. Podemos chamá-las de teologias produzidas por pentecostais, mas ainda dependentes das hermenêuticas e propostas dogmáticas que não levam às últimas consequências a importância da experiência” (Introdução, p. 17).
  • “Ainda preocupados com procedimentos metodológicos, é importante enfrentarmos a noção de centralidade da Bíblia, mas considerando as diferenças desse lema em relação ao Protestantismo brasileiro. No mundo pentecostal, essa noção e trato com a Bíblia não ocorre preferencialmente pela via cognitiva (sistematização), mas sim pela via da experiência (sensorial), encenando as Escrituras como palavra viva, em que os textos bíblicos são performatizados, recriando novas realidades” (Introdução, p. 20).
  • “Estudando o texto [de At 2.1-4], alguns alguns estudiosos dizem perceber que havia uma tradição intimamente ligada a expressões de êxtase que acabou recebendo tratamento redacional ficando ‘domesticada’. Nessa perspectiva, o narrador [Lucas] então teria transformado o fenômeno de êxtase e línguas, com auxílio das tradições judaicas, em anúncio. O contexto histórico da festa de Pentecostes seria uma estratégia literária. Tal intuição se dá pelo fato de que, no livro de Jubileus (Jub. 6), importante obra judaica do séc. II a.C., é possível encontrar uma conexão dessa festa com a renovação da aliança de Noé e Moisés. Nessa narrativa, Fílon, ao falar da entrega da Lei, diz que ‘uma voz soou do fogo que descia do céu, uma voz muito maravilhosa e terrível. A chama foi dotada de linguagem familiar para seus ouvintes’. Na tradição rabínica (b. Shab. 88b), séc. II d.C., com origens mais antigas, encontramos a crença na inicial proclamação da Lei a setenta nações. Há, por isso, estudiosos que defendem a tese de que Lucas, então, talvez tenha ‘domesticado’ o fenômeno de êxtase usando a tradição da proclamação da Lei às nações, que, em Atos, são os judeus da Diáspora, ocultando o caráter extático da experiência da narrativa mais antiga, fazendo, do texto, uma midrash para proclamação às nações” (Cap. 10, p. 187,188). 

Os trechos acima transcritos são exemplificativos, e justificariam a reação indignada por parte de qualquer crente devidamente informado das doutrinas bíblicas.

Há, ainda, um componente que demanda atenção cuidadosa: Mesquiati e Kenner tentam contrapor a hermenêutica pentecostal à hermenêutica calvinista, mas com argumentos equivocados. O problema reside numa caracterização deturpada do calvinismo, o que, todavia, pode passar despercebido a pentecostais que estejam ansiosos por reunir argumentos em defesa de sua confissão.

Para que não haja dúvida: pentecostais e calvinistas diferem em muitos aspectos, especialmente nas searas da soteriologia, da pneumatologia e da escatologia, mas compartilham as mesmas bases de fé no que concerne à Bíblia Sagrada como sendo a Palavra de Deus inspirada, inerrante, infalível, autoritativa, suficiente e imutável, além de adotarem o método gramático-histórico na interpretação das Escrituras. Bem por isso, os mesmos argumentos que os autores utilizam para criticar a fé reformada serviriam para combater a fé pentecostal, porque o que eles têm em mira é o próprio alicerce da revelação bíblica.

Buscando um liame histórico que sustente a pentecostalidade e que ao mesmo tempo se afaste dos reformadores “magisteriais”, os autores defendem que os espiritualistas da Reforma Radical seriam predecessores importantes do pentecostalismo.

De modo explícito, Mesquiati e Kenner dão crédito à distinção entre “Palavra exterior” e “Palavra interior”, a primeira correspondente ao texto bíblico, ao Jesus histórico, aos sermões e aos sacramentos, e a segunda, a uma suposta Palavra que estaria no coração dos salvos. Citando um dos reformadores radicais, os autores chegam a concordar com a ideia de que “o Espírito vem a ser um modo da Palavra” (Cap. 5, p. 129).

Mais ao final do livro, Mesquiati e Kenner incluem considerações sobre poimênica (ação pastoral) e missiologia, em capítulos que tornam ainda mais nítida sua inclinação a uma visão de mundo “progressista”.

A proposta teológica constante do livro é deveras arriscada e adentra ao campo dos pressupostos da interpretação bíblica, o qual naturalmente precede os terrenos próprios dos métodos e das regras de hermenêutica. Trata-se de algo absolutamente grave.

O emprego de diretrizes forjadas nas ciências humanas serve como instrumento de premissas teologicamente equivocadas, como se a Bíblia não fosse a revelação definitiva de Deus, como se não houvesse na Escritura o caráter celestial, sobrenatural e sagrado, como se os princípios e regras de interpretação não estivessem nela esboçados, podendo, assim, ser objeto da volatilidade das especulações acadêmicas.

O teste de ouro dessa nova abordagem de hermenêutica pentecostal seria pedir aos autores que aplicassem seu método à exegese de textos bíblicos, especialmente daqueles que tratam de temas como a criação do homem e da mulher, o papel da mulher no casamento, pecados sexuais, aborto, sujeição às autoridades civis e eclesiásticas, direito de propriedade, laicidade do Estado. Não é possível que a adoção de pressupostos tão diferentes dos que adotamos até hoje produzam as mesmas consequências no trabalho de interpretação.

É bastante curioso e digno de toda preocupação que os responsáveis pela elaboração e edição da obra tenham se sentido tão fortemente encorajados a oferecer ao público da CPAD uma obra de tamanho desapego aos lastros do Cristianismo histórico, ortodoxo, protestante, evangélico e pentecostal.

Causa verdadeira estupefação que alguém tenha tomado fôlego para uma empreitada dessa natureza, conhecedores que são (os autores e o editor) da tradição da igreja, das crenças do povo, dos costumes ministeriais e eclesiásticos, do acervo bibliográfico precedente (no pentecostalismo assembleiano) e, enfim, daquilo que vai registrado na Declaração de Fé das Assembleias de Deus, que elege o método histórico-gramatical como forma destinada à compreensão das Escrituras, em sintonia com a Reforma.

É certo que a liberdade de expressão abriga e protege quaisquer manifestações de pensamento, e existe uma farta literatura criticista em livrarias e bibliotecas pelo mundo. Contudo, devemos indagar se é admissível a uma editora confessional conservadora publicar livros de cunho liberal.

Em termos práticos, surge a questão da formação de obreiros, que, uma vez submetidos a professores assembleianos e livros da CPAD que ostentem uma linha teológica dessa espécie, estarão na mira de seduções intelectuais de qualidade comprovadamente prejudicial à fé pessoal e coletiva, pensando tratar-se de algo positivo, porque chancelado por instâncias oficiais da denominação.

Referência da obra analisada:

OLIVEIRA, David Mesquiati; TERRA, Kenner R. C. Experiência e hermenêutica pentecostal: reflexões e propostas para a construção de uma identidade teológica. Rio de Janeiro: CPAD, 2018, 224p.

Ministro do Evangelho (ofício de evangelista), da Assembleia de Deus em Salvador/BA. Co-pastor da sede da Assembleia de Deus em Salvador. Foi membro do Conselho de Educação e Cultura da Convenção Fraternal dos Ministros das Igrejas Evangélicas Assembleia de Deus no Estado da Bahia, antes de se filiar à CEADEB (Convenção Estadual das Assembleias de Deus na Bahia). Bacharel em Direito.

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