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Racismos e exageros: um urgente e necessário freio de arrumação – Parte 2

Se tudo for racializado, então as questões realmente raciais não serão percebidas.

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Personagem “Adelaide” foi acusada de black face (Divulgação)

William Douglas, juiz federal, professor e escritor

Um dos piores erros ao lidar com a questão racial é permitir que problemas ou acontecimentos não raciais sejam classificados como tal. Se tudo for racializado, então as questões realmente raciais não serão percebidas e, no fim das contas, os problemas não serão solucionados. A identificação equivocada do problema importa na escolha de soluções erradas.

Vejam o caso da primeira parte deste artigo, que menciona uma Juíza que foi hostilizada por dar sua opinião jurídica sobre a questão do Magazine Luiza. Ao discordar do programa ela foi chamada de “racista”. Eu indago: uma juíza discordar de um programa citando o art. 7º, XXX, da CF é racismo? Eis um exagero: chamar de “racista” quem discorda de alguma proposta de ação afirmativa. Será que não pode ser discutida ou questionada uma nova ideia sob pena de ser tachado como “racista”? Imaginem uma proposta de que a partir de agora, para acelerar a defasagem de negros no serviço público, todos os concursos terão cota de 100%. Isso seria uma expansão da ideia do MAGALU. E aí? Quem disser que isso é má ideia é um “racista”? Chegaremos a este grau de patrulhamento?

O que estou tentando explicar é que até mesmo dentro de questões que envolvam raça e cor não é saudável nem correto racializar tudo. Fazer isso dilui o tema e acaba por tirar a força dos casos realmente raciais. Devemos preservar a liberdade de pensamento e de sua expressão como algo essencial para identificar os problemas reais e encontrar as soluções corretas.

Outro exemplo desse exagero de racializar tudo ocorreu recentemente com a deputada federal Bia Kicis. A deputada publicou em suas redes uma ironia aos adversários políticos Sergio Moro e Henrique Mandetta, na qual satiriza a situação de “desemprego” deles e que por isso precisariam se fingir de negros e pedir emprego no Magazine Luiza. Imediatamente foi chamada de racista por estar usando black face.

Vamos lá. Qualquer pessoa alfabetizada racialmente sabe o que é black face e que seu uso pode configurar racismo. Porém, nem sempre. Uma peça de época que mostre o black face obviamente não será racismo, pois inexiste o dolo específico. Da mesma forma, se a intenção da postagem era ironizar adversários políticos, é um exagero querer racializar o embate. Não existe dolo específico! Isso é básico em Direito Penal!

A questão não é racial e sim de liberdade de expressão. Não é uma briga entre a deputada e os negros, mas sim entre a deputada e dois adversários. Uma briga entre brancos, anoto. A deputada ironizou o desemprego dos seus opositores políticos sugerindo que precisariam se inscrever no programa de trainee da Magazine Luíza, que é o assunto da hora. O requinte a ser percebido é: ela insinua que assim como (a seu juízo) eles foram falsos nas atuações anteriores serão falsos na hora de pedir emprego. Talvez nem todos captem essa ironia fina, mas não deveria ser tão difícil de perceber que se trata de uma peça direcionada aos adversários políticos. Quando diz que eles irão se maquiar para ter o requisito não há desprestígio à raça mas aos políticos.

É um bom humor? Eu, particularmente, não achei grande coisa. Mas o humor, mesmo quando de baixa qualidade, é protegido pela Constituição e precisamos diferenciar quando ele constitui ou não racismo.

Na ADI 4.451, o Min. Celso de Mello disse:

“Em uma palavra: o riso e o humor são expressões de estímulo à prática consciente da cidadania e ao livre exercício da participação política, enquanto configuram, eles próprios, manifestações de criação artística. O riso e o humor, por isso mesmo, são transformadores, são renovadores, são saudavelmente subversivos, são esclarecedores, são reveladores. É por isso que são temidos pelos detentores do poder ou por aqueles que buscam ascender, por meios desonestos, na hierarquia governamental.

Daí a observação de GEORGES MINOIS (História do Riso e do Escárnio, 2003, Editora Unesp), para quem:
‘O debate livre não pode prescindir da ironia. Riso e democracia são indissociáveis, apesar de os regimes autoritários, que se baseiam num pensamento único, não conseguirem tolerar esse distanciamento criado pelo riso. O riso de combate (…) conhece (…) um extraordinário renascimento no século XIX (…). Porém, já desponta um riso mais moderno, mais vasto, que engloba tudo, riso de Demócrito para alguns, riso diabólico para outros, riso do nonsense, do absurdo (…), o riso filosófico, o riso fino, o riso irônico (…)’

O humor e o riso constituem armas preciosas, instrumentos poderosos de insurgência contra os excessos do poder, contra os desmandos dos governantes, contra os abusos da burocracia estatal, contra o menosprezo das liberdades, contra o predomínio da mentira, contra o domínio da fraude.

O riso, no fundo – seja ele o riso cético de Demócrito, ou o cínico de Diógenes, ou o satírico de Juvenal, ou o catártico, ou o festivo, ou o solitário, ou o amargo, ou o polido, ou o filosófico ou o político –, traduz expressão de uma das respostas fundamentais do ser humano perante o dilema da existência e os desafios com que nos defrontamos ao longo de nossas vidas.

Daí a aversão, o medo e a repulsa ao riso e ao humor, manifestados por aqueles que controlam o aparelho de Estado ou por aqueles que desejam assumir-lhe os postos de direção.

O fato é que o riso, especialmente o riso satírico, o riso corrosivo, é instrumento de combate, pois ‘o riso seduz, intriga, desestrutura, provoca a cólera ou a admiração (…)’.

Nesse contexto, reveste-se de significativa importância a proteção à liberdade de criação artística e de expressão do pensamento.”

Já o Ministro Alexandre de Moraes, na mesma ADI, disse:

“O direito fundamental à liberdade de expressão, portanto, não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também àquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias (Kingsley Pictures Corp. v. Regents, 360 U.S 684, 688-89, 1959). Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional”.

Para citar a contraparte norte-americana, lembro que em junho de 2017, no caso Matal v. Tam, a Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu que não há exceção à Primeira Emenda de sua Constituição, aquela que prevê o direito à livre expressão e proíbe o Estado de estabelecer religião oficial, o livre exercício religioso, limitar a liberdade de expressão, de imprensa e o direito de associação.

Nesse caso o governo havia proibido o registro da marca “The Slants”, que é uma forma ofensiva de se referir às pessoas de origem asiática, e a Suprema Corte entendeu que mesmo as formas de expressão odiosas estão protegidas constitucionalmente. A Primeira Emenda protege até as manifestações mais detestáveis, porque a alternativa seria a censura.

É bom lembrar que a liberdade não é só aquilo que a gente gosta, mas também defender o que a gente não gosta de ouvir. Ninguém pode ser dono dessa liberdade, como lamentavelmente tivemos no passado e que tanto lutamos para recuperar. Recentemente se permitiu que o grupo Porta dos Fundos ofendesse a todos os que veneram Jesus e Maria, e muitos comemoraram. Não consigo entender como muitos aplicam dois pesos e duas medidas. Pode ironizar Jesus e Maria, mas não pode ironizar políticos dizendo que se maquiarão para conseguir um emprego exclusivo para negros? O caso ainda fica mais paradoxal pois, em se tratando de parlamentar, a garantia de liberdade de opinião e expressão do pensamento é ainda mais protegida.

Logo, a questão da deputada expressa mais um exagero: ver questões raciais onde elas não existem, onde a intenção é evidentemente ironia política. O fato é que quando a deputada ironiza adversário, quem pode eventualmente ter legitimidade para reclamar seriam os políticos retratados, e não pelo viés racial, mas outro. E, mesmo nessa outra seara, só irão bem aqueles que perceberem que a questão nodal é a discussão dos limites da liberdade de expressão.

Por outro lado, enquando situações não raciais são com elas confundidas, por ignorância ou má-fé, passam incólumes situações que me parecem extremamente graves e das quais darei exemplos. Já venho denunciando a tentativa de algumas pessoas de impor aos negros a escolha de determinada ideologia, religião ou sexualidade. Comparo as pessoas que querem fazer isso aos antigos donos de navios negreiros, e explico. É um fenômeno que chamo de “navio negreiro moderno”, outros chamam de “novos senhores de engenho”.

Vários alunos cristãos me informam que professores universitários dizem que “sendo negros não poderiam ser cristãos”. Várias pessoas, brancas e negras, já me relataram terem sido hostilizadas ou criticadas por terem relações amorosas interraciais (a chamada “palmitagem”). O que temos aqui é um discurso vendido como “defesa dos negros”, mas na verdade nada é senão um discurso que quer subjugar a vontade dos negros impondo-lhes posições obrigatórias. Infelizmente poucos conseguem perceber a profunda ofensa (e pensamento racista) que é dizer que um negro não pode escolher sua ideologia, fé ou parceiro sexual.

Assim como, no passado, alguns negros, seguindo a cultura da época, vieram a ter seus escravos, infelizmente hoje, mesmo com a nova cultura antirracista que se quer implantar, temos negros querendo impor suas escolhas a outros se valendo do argumento racial. Apenas para citar um exemplo, tivemos o 1º barão negro do Brasil, um empresário extraordinário cuja biografia é objeto do livro Barão de Guaraciaba – Um Negro no Brasil Império, de autoria do historiador Carlos Alberto Dias Ferreira.

Não podemos aceitar que brancos ou negros queiram impor decisões a outros, ou que os calem, ou que façam o patrulhamento de ideias. Não podemos aceitar que alguém seja ofendido por fazer escolhas pessoais lícitas. Impedir ou forçar alguém a se manifestar ou escolher um ou outro caminho por conta de sua cor de pele é reproduzir a cultura do racismo.

Sou e sempre serei defensor da liberdade individual e do respeito às diferenças, além das políticas inclusivas que busquem tornar o país melhor. Contudo, em todas estes desafios é preciso evitar exageros. Precisamos respeitar as liberdades e proteger a todos de patrulhamento, censura ou mordaça. E temos que combater o racismo sempre, mas onde a questão for realmente de racismo.

Juiz Federal, Titular da 4ª Vara Federal de Niterói (RJ) com vários prêmios de produtividade. Professor Universitário. Mestre em Direito, pela Universidade Gama Filho – UGF. Pós-graduado em Políticas Públicas e Governo – EPPG/UFRJ. Bacharel em Direito, pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Autor best-seller no Brasil e nos Estados Unidos.

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