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Papisa Joana: Igreja Católica já teve uma mulher como papa?

Embora seja tida pela maioria dos historiadores modernos e estudiosos religiosos como fictícia, possivelmente originada de uma sátira antipapal, o assunto merece a nossa reflexão.

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Papisa Joana (Divulgação)

Houve na história da Igreja Católica Apostólica Romana uma mulher assumindo o cargo mais alto da organização religiosa? Será que alguma vez aconteceu de uma mulher suceder a cadeira de Pedro?

Esse assunto já foi palco de grandes debates nos séculos que precederam a Reforma, ficou adormecido por certo tempo e tem ganhado corpo nos últimos anos, principalmente em função do Best-Seller “Papisa Joana” de autoria de Donna Wolfolk Cross lançado em 1996 e do filme “A papisa Joana”, baseado no livro citado anteriormente, dirigido por Sönke Wortmann e lançado em 2009 na Alemanha.

Existe, ainda, outro filme um pouco mais antigo, “Papisa Joana”. Ele foi lançado na Grã-Bretanha em 1972 e dirigido por Michael Anderson.

O tema vem conquistando espaço por alguns sedentos de teorias anticlericais e não é difícil encontrar as mais variadas opiniões em meio aos blogueiros e internautas de plantão.

Embora seja tida pela maioria dos historiadores modernos e estudiosos religiosos como fictícia, possivelmente originada de uma sátira antipapal, o assunto merece a nossa reflexão.

Até mesmo o National Geographic Channel preparou em 2010 uma série de documentários sob o tema “Arquivos Confidenciais” em que aborda a biografia de pessoas que deixam os estudiosos intrigados, a saber, Hitler, Zorro, Capitão Kidd, Alexandre o Grande, Marco Polo, Saladino, Billy The Kid, Cleopatra, Robin Hood, Jack o estripador, Nostradamus, Rasputin, Joana D’Arc, Rei Arthur, dentre outros e dedicou um dos episódios à papisa.

Afinal, é a Papisa uma lenda ou uma história real?

Principais Referências sobre Joana

O monge irlandês Marianus Scotus (1028-1083) está entre os primeiros a escrever sobre a papisa. Ele se tornou monge em 1052 e teve sua vida monástica aprovada pelos mosteiros nos quais passou, de Saint Martin em Colónia e de Fulda, e em Mainz , morrendo em Dezembro de 1082 ou 1083 e sendo sepultado na Catedral de Mainz, cidade esta que 200 anos antes via nascer Joana.

Marianus escreveu em sua “Storia sui temporis clara’’ que, “o papa Leão morreu nas calendas de agosto. Foi sucedido por Joana, uma mulher, que reinou durante dois anos, cinco meses e quatro dias”[1].

Martinho de Opava é uma das principais personalidades a defender a existência de Joana. Ele fez parte da Ordem de Pregadores em sua juventude, o que o fez ficar conhecido como Martinus Polonus. Em meados da década de 50 do século XIII foi nomeado capelão papal por Clemente IV e Arcebispo de Gnesen em 1278 por Nicolau III, ano em que morreu. Como capelão papal por cerca de vinte anos, Martinho teve acesso a vários documentos do Vaticano. Em “Chronicon Pontificum et Imperatum“, ele escreve:

“John Anglicus, nascido em Mainz, foi papa durante dois anos, sete meses, e quatro dias, e morreu em Roma, pelo que depois ficou vago o cargo de papa durante um mês. Reivindica-se que este João foi mulher, que quando moça fora levada a Atenas vestida com roupas de homem por certo amante seu”[2].

De acordo Martinho de Opava, Joana era filha de um casal inglês que residia em Mainz, na Alemanha. Em sua fase adulta, Joana se apaixonou por um monge e eles acabaram indo para Atenas. Depois de três anos foram para Roma e, a fim de preservar seu relacionamento e de evitar escândalos, ela travestiu-se de homem e se passou por monge, sob o nome de Johannes Angelicus e ingressou no mosteiro de São Martinho. Chegou a ser nomeada Cardeal e após a morte de Leão IV foi eleita por unanimidade ao cargo de Papa em 17 de Julho de 855.

Ela teria conseguido manter sua identidade oculta por certo período, mas após engravidar, não tendo em conta o tempo em que a criança haveria de nascer, começou a sentir as dores de parto durante uma procissão numa rua estreita, entre o Coliseu de Roma e a Igreja de São Clemente e acabou dando à luz em meio à multidão, que reagiu atando-a em um cavalo e apedrejando-a até a morte.

A primeira pessoa a registrar tal assunto foi Anastasius, o bibliotecário, autor do “Liber Pontificalis”, uma coleção de biografias papais que vai até Nicolau I (858-67). Anastasius viveu no mesmo período de Joana e em seu escrito biográfico, podem ser encontradas palavras idênticas às de Martinho. Seu manuscrito pode ter sido uma das fontes para o “Chronicon Pontificum et Imperatum” de Polonus.

Outras referências

Outra pessoa que cita a existência de Joana é o historiador e monge beneditino Sigeberto de Gembloux (1030 – 1113). Em sua “Chronographia“, escreveu: “Houve rumores de que esse João era uma mulher e era conhecida como tal apenas por um companheiro que teve relações com ela e a deixou grávida. Ela deu à luz quando era papa. Por isso certas pessoas não a incluem na lista dos papas, razão pela qual ela não tem um número em seu nome”[3].

Godofredo de Viterbo, historiador e secretário dos imperadores Henrique VI, Conrado III e Frederico I, escreveu uma crônica denominada de “Panteão”. Ele traça a história desde Adão até o ano de 1186. Godofredo comenta que, “Joana, a papisa, não é contada depois de Leão IV”[4].

Há, ainda, o relato de Jean Pierier de Mailly, cronista dominicano francês da cidade de Metz, que viveu em meados do século XIII. Em sua obra “Chronica universalis Mettensis”, ele diz que “Há uma interrogação a respeito de um certo papa, ou melhor, papisa, que não é incluído na lista dos papas de Roma porque era uma mulher que se disfarçava de homem e a motivo de seus grandes talentos tornou-se secretário curial, cardeal e papa. Um dia, quando montava a cavalo, deu à luz uma criança”[5].

Esse fato, entretanto, diverge do relato de Polonus, sendo datado por Jean mo ano de 1099.

Estevão de Bourbon, outro dominicano francês, usou a obra de Jean de Mailly como fonte para seu “Diversis Materiis Praedicabilibus”, mas data o ocorrido em 1100, diferentemente de sua fonte e abomina a atitude de Joana, dizendo:

“Mas uma ocorrência de maravilhosa audácia ou mesmo insanidade aconteceu por volta de AD 1100, conforme é relatado nas crônicas. Certa mulher, culta e bem versada na arte notarial, adotando roupas masculinas e fingindo ser homem, chegou a Roma. Por sua diligência, assim como seu saber em letras, foi nomeada secretário curial. Depois, sob a direção do Demônio, foi feita cardeal e finalmente papa. Tendo ficado grávida, deu à luz quando montava (um cavalo). Mas quando a justiça romana foi informada disso, ela foi arrastada para fora da cidade, amarrada pelos pés aos cascos de um cavalo, e ao longo de meia légua foi apedrejada pelo povo.”[6]

Teodorico Engelhusius diz em sua “Chronicon” que, “ela era chamada de João Anglicus. Ela não é contada entre os papas. Ela se tornou grávida e deu à luz um filho em procissão”[7].

Motivos para acreditar na existência da papisa

De acordo com o Professor aposentado da Universidade Federal do Espírito Santo, Carlo Bússola, em uma série de artigos intitulados “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder” publicados no Jornal “A Tribuna” de Vitória – ES, apesar de todos os esforços para negar a existência da papisa, existem quatro motivos fundamentados para crer na veracidade da história desta mulher. Vejamos a seguir:

A rua evitada

Conforme vimos anteriormente, conta-se que Joana deu à luz enquanto a procissão passava por uma rua estreita entre o Coliseu de Roma e a Igreja de São Clemente. Há relatos que, após esse episódio, a rua estreita, local onde aconteceu o trágico parto da papisa, passou a ser evitada, bem como impedida de receber as procissões subsequentes.

Certo bispo de Estrasburgo, por nome João Burchard, e também mestre de cerimônias papal, relata em seu Liber Nitarum que recebeu uma crítica bastante severa por ter rompido com essa tradição enquanto organizava uma procissão para o papa Inocêncio VIII:

“Na ida e na volta, ele (o papa) passou pelo Coliseu e por aquela rua reta onde está localizada a estátua da papisa (imago papissae), como sinal de que, segundo dizem, João VII Anglicus lá deu à luz uma criança. Por essa razão, muitos dizem que nunca é permitido aos papas passar por lá a cavalo. Por isso, o Senhor Arcebispo de Florença, o Bispo de Massano e Hugo de Bencii, Subdiácono Apostólico, fizeram-me uma reprimenda.”[8]

Burchard continua seu relato dizendo que, foi se informar desse assunto com o Bispo de Pienza, o qual lhe disse que evitar tal rua era tolice e heresia e que desconhecia qualquer documento que proibia tal travessia. Entretanto, fica mais do que evidente, que havia uma tradição de evitá-la, tradição esta que levou outros três líderes católicos a repreendê-lo veementemente. Não obstante, o próprio Burchard afirma que não apenas esses três, mas “muitos” diziam que era proibido passar um papa naquela localidade. Com isso, entendemos que Burchard, o Bispo de Pienza e possivelmente outra minoria não ligavam para essa tradição, mas que a tradição era viva. Outra observação interessante é a de que Burchard não questiona a existência da papisa.

Alguns defensores modernos de que a história da papisa não passa de um mito, explicam que a rua era evitada não pelo fato de ter supostamente ocorrido tal atrocidade, mas que em função de ser estreita, isso dificultava a passagem de uma multidão de pessoas durante uma procissão. O fato de essa rua ser estreita, entretanto, não atrapalhou em nada o evento organizado por Burchard, conforme vimos anteriormente.

A pedra memorial

Tempos depois da morte da papisa foi posto nesse trajeto uma estátua de uma donzela com uma criança no colo com a inscrição “Petre, Pater Patrum, Papisse Prodito Partum“, que significa “Ó Pedro, Pai de Pais, Denunciai o Parto da Papisa” de acordo com o relato de Jean de Mailly. Segundo Estêvão de Bourbon, o conteúdo da inscrição varia ligeiramente para “Parce Pater Patrum, Papisse Prodere Partum” que significa “Abstende-vos, Pai de Pais, de Denunciar o Parto da Papisa”.

Além desses dois relatos, temos mais duas citações a analisar. A primeira é a de um frade franciscano de Erfurt, na Alemanha. Ele escreveu em sua Chronica Minor:

“Houve outro falso papa, cujo nome e ano são desconhecidos. Pois era uma mulher, como é reconhecido pelos romanos, de aparência refinada, grande saber e hipocritamente de elevada conduta. Disfarçava-se com roupas de homem e finalmente foi eleita ao papado. Quando papa ficou grávida e, quando estava dando à luz, o (ou um) demônio anunciou abertamente o fato a todos no pátio público, gritando este verso para o papa: Papa, Pater Patrum, Papisse Pandito Partum”[9].

O significado da frase é o seguinte: “Ó Papa, Pai de Pais, Revelai o Parto da Papisa”. Encontramos um relato semelhante em outra crônica alemã, Flores Temporum. Neste relato, o autor conta a história de João Anglicus, que na verdade era uma mulher que se vestia de homem e que foi levada para Atenas por seu amante para estudar. Quando ela foi para Roma, distinguiu-se tanto por seu saber que foi eleita papa. Ela, porém, fingindo ser homem, engravidou-se de seu antigo amante e, nesse tempo, “um endemoniado foi indagado sob juramento sobre quando o demônio partiria. O demônio respondeu em verso: “Papa, Pater Patrum, Papisse Pandito Partum. Et tibi tunc edam, de corpore quando recedam”[10].

Repare que a frase é igual à descrita em Chronica Minor. O autor de Flores Temporum apenas acrescenta mais uma frase que significa: “E então eu vos farei saber quando partirei do corpo” e conclui seu relato dizendo que “ela morreu no parto entre o Coliseu e a Igreja de São Pedro. Por isso, os papas sempre evitaram essa rua”.

Num primeiro momento, poderíamos considerar esse tópico como algo irrelevante, visto que há divergências nos relatos. Entretanto, o monge flamengo Van Maerlant disse em seu Spiegel Historical que o memorial com a inscrição “pode ser inspecionado no local”[11].

Quando uma história é passada e/ou repassada de uma pessoa para outras, ela pode acabar sofrendo com a interpretação particular de cada uma delas e fugir do seu estado original. É como quando Mateus, evangelista e um dos Apóstolos do Senhor, diz que Judas se suicidou através de enforcamento (Mt 27.5). A notícia de como Judas morreu correu pela circunvizinhança e quando Lucas foi em busca de respostas para sua pesquisa, registrou nos Atos dos Apóstolos que o filho da perdição morreu precipitando-se, isto é, caindo de algum lugar (At 1.16-18). O que pode ter acontecido, então? De fato, Judas foi se enforcar. Pulou e morreu sufocado ou com o pescoço quebrado. Depois de certo tempo, ou imediatamente, a corda ou o galho de uma árvore não suportou e arrebentou, vindo ele a precipitar-se e cair prostrado, arrebentando-se pelo meio e derramando suas entranhas.

De fato, alguém possuído por um demônio pronunciou tais palavras e quando o papa Benedicto III erigiu a estátua da papisa, provavelmente colocou juntamente com a estátua o tal memorial com as palavras inscritas, mas isso será assunto para o próximo tópico. Não temos motivos para duvidar que o memorial existiu e as divergências da inscrição não são suficientes para negar sua veracidade, principalmente porque as diferenças das frases são mínimas.

A estátua

Conforme vimos anteriormente, pouco depois da morte da papisa, foi confeccionada uma estátua de uma donzela com uma criança no colo, bem como com a famosa inscrição já discutida. De acordo com Teodorico de Nieheim, Bispo de Padeborn, advogado, tabelião da corte papal e secretário de Urbano VI, disse que a estátua foi “erigida pelo Papa Benedicto III, a fim de inspirar horror pelo escândalo que ocorreu naquele lugar”[12].

Em visita a Roma, Martinho Lutero viu a tal estátua e ficou surpreso de ver tal objeto lá, pois era motivo de embaraço[13]. Essa visita foi mais provavelmente no final do ano de 1510, portanto, antes do ano em que publicou suas 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, em 1517[14].

De acordo com os autores do livro “A Papisa Joana, o Mistério da Mulher Papa”, Rosemary e Darroll Pardoe, a estátua foi removida durante a segunda metade do século XVI, possivelmente a mando do Papa Sixto V[15].Os Pardoe são da opinião de que a história da papisa não passa de uma lenda e prometem ser imparciais em sua pesquisa, entretanto, chegam eles mesmos a admitir que, “de quase nada podemos ter certeza a respeito da estátua, a não ser o simples fato de que ela existiu e esteve estreitamente relacionada com a papisa durante pelo menos 150 anos”[16].

A cadeira furada

A consagração de cada papa era realizada na catedral papal, a Basílica de Latrão. Para essa cerimônia eram usadas duas cadeiras furadas. Uma dessas cadeiras existe até o dia de hoje e pode ser encontrada no museu do Vaticano. O uso das cadeiras foi uma forma de prevenir que novamente de uma mulher se tornasse papa e o furo era para que fosse realizada uma contraprova de que o papa era efetivamente homem. Durante as reformas do papa Adriano VI, o uso delas foi abolido em aproximadamente 1522-3.

Os Pardoe encaram a história das cadeiras como uma invenção para acalentar a existência da papisa enquanto outros pensam se tratar de uma conspiração para “ocultar e obscurecer a verdade da história da papisa Joana”[17]. Não podemos ignorar o fato de que o período medieval foi marcado por líderes católicos inescrupulosos.

Latourette comenta que, por volta do ano 500 a Igreja era invadida por ideais que eram totalmente contrários ao Evangelho, principalmente a concepção e o uso de poder que estavam em rigoroso contraste com a espécie de poder mostrado na vida e nos ensinamentos de Jesus. O cristianismo estava sendo seriamente afetado pela doença fatal do Império Romano. Desde então, os bispos tendiam a tornar-se magnatas não diferindo grandemente dos senhores seculares, exceto em seus títulos e em algumas de suas funções. Não era difícil ouvir de bispos que eram glutões, beberrões e lascivos. Muitos acabaram sucumbindo. As últimas décadas do século IX foram anos de profundas trevas tanto para Igreja Católica quanto para a Europa Ocidental. No ano de 1095, a primeira cruzada foi promovida pelo papa Urbano II e ainda muitas outras (até o final do século XIII) seriam empreendidas com o apoio ou senão com a promoção de um pontífice romano[18].

Não é surpresa e tampouco segredo que desde que a Igreja se ajuntou ao Estado no final do século IV, a decadência espiritual foi enormemente progressiva. O frade franciscano Guilherme de Ockham (1288-1347), além de filósofo, lógico e teólogo escolástico, denuncia em sua Opus Nonaginta Dierum que, os papas eram corruptos, hereges, impuros, sujos e dados ao pecado. Ele ainda comenta de uma mulher que “sustenta-se nas crônicas que (…) foi reverenciada como papa pela igreja universal durante dois anos, sete meses e três dias”[19].

Baseados na podridão em que se encontrava o clero desse período não é de se admirar que tenham omitido a existência de uma papisa ou se esforçado para adulterar documentos que comprovariam tal fato, afinal, seria uma mancha na história da “Santa Igreja”. Dependendo da motivação, as pessoas empreendem tal esforço. Temos como exemplo, a ressurreição de Jesus. Mateus nos relata que os homens que vigiavam o Sepulcro para onde o corpo de Jesus havia sido levado, correram até os principais dos sacerdotes para lhes falar acerca da ressurreição. Os soldados então receberam propina para omitirem tal fato. Eles deveriam dizer que os discípulos roubaram o corpo do Cristo enquanto os incompetentes vigilantes dormiam. Obviamente que o Governador os puniria por essa negligência, mas os anciãos judeus garantiram que iriam persuadi-lo a não fazer-lhes nenhum mal. Mateus encerra dizendo que “Então eles, tendo recebido o dinheiro, fizeram como foram instruídos. E essa história tem-se divulgado entre os judeus até o dia de hoje” (Mt 28.15).

João Capgrave escreve em seu Solace que “adiante em outra parte deste claustro existe uma capela e lá fica a cadeira em que o papa é sentado para verificar se é homem ou mulher, porque a igreja foi enganada uma vez por uma mulher que morreu em procissão”[20].

William Brewyn, um inglês que escreveu um guia das igrejas de Roma, declara em concordância com Capgrave que na Capela de São Salvador, na Basílica de Latrão, existem “duas ou mais cadeiras de pedra de mármore vermelho, cadeiras sobre as quais, segundo ouvi dizer, é feita a prova de que o papa é macho ou não”[21].

Bartolomeo Platina, prefeito da biblioteca do Vaticano durante o pontificado de Sixto IV, declara em sua obra Vidas dos Papas que, “quando os papas são pela primeira vez entronizados na cadeira de Pedro, que para esse fim é furada, seus órgãos genitais são apalpados pelo mais jovem dos diáconos presentes”[22].

Felix Haemerlein relata de forma mais detalhada em sua De Nobilitate et Rusticitate Dialogus como era realizada a consagração papal:

“(…) até o presente dia (a cadeira) está ainda no mesmo lugar e é usada na eleição do papa. E a fim de demonstrar seu valor, seus testículos são apalpados pelo clérigo mais jovem presente como testemunho de seu sexo masculino. Quando verifica ser assim, a pessoa que os apalpa grita em alta voz: ‘Ele tem testículos’. E todos os clérigos presentes respondem: ‘Deus seja louvado’. Depois prosseguem alegremente na consagração do papa eleito”[23].

Seria cômico se não fosse trágico!

Considerações Finais

Entre os séculos XIV e XV a papisa foi incluída entre os bustos papais feitos para decorar a nave da Catedral de Siena. A Imagem foi colocada entre Leão IV e Benedictus III, acompanhada pela inscrição “Johannes VIII, foemina de Anglia”, sem ser incomodada por pelo menos 200 anos. Essa série de bustos encontra-se em Siena até os dias de hoje, excetuando, é claro, a da papisa que foi removida aproximadamente no ano de 1600 pelo Papa Clemente VIII[24].

Durante o concílio de Constança, quando o pré-reformador John Huss defendia sua posição confiando na promessa de ser salvaguardado, o “Ganso” (Huss), preparador do caminho do “Cisne” (Lutero), acusado de herege, batalhou pela fé que uma vez nos foi dada e por várias vezes citou essa mulher, que era conhecida como Papa João[25].

Certo escritor e jornalista grego, Emmanuel Royidis, publicou em 1886 seu romance “Papisa Joana”. Apesar de ser um romance, Royidis afirmou que continha provas conclusivas de que a papisa Joana realmente existiu e que a Igreja Católica tinha tentado encobrir o fato de durante séculos. O livro foi controverso e por isso ele foi excomungado da Igreja Ortodoxa Grega[26]. O livro foi traduzido para o inglês por Lawrence Durrell e pode ser encontrado na língua portuguesa.

Não acredito que um mito ou uma invenção conseguiria transcender pelo menos sete séculos de história.  Penso que por trás dos interesses de uma organização que tinha poder para controlar o pensamento do povo, do fanatismo religioso, da fraqueza intelectual e da falta de conhecimento de boa parte das pessoas, a história que tentaram mitificar, possui mais evidências do que se pensa.

Como disse o historiador, arqueólogo, arquivista e paleógrafo francês Auguste Vallet de Viriville: “Onde quer que vejais uma lenda, podeis ter certeza, se a investigardes a fundo, que encontrareis uma história“.

Notas:
[1]  SCOTUS, Marianus. Chronicon Pontificum et Imperatum ; Ferum Germanicarum Scriptores aliquot insignes, Ed. J. Pistorius. 1745, p. 639.
[2]  POLONUS, Martinho. Chronicon Pontificum et Imperatum; Monumenta Germaniae Historica: Scriptores, XXII, p. 428.
[3]  GEMBLOUX, Sigeberto de. Chronographia; Chronicon Pontificum et Imperatum ; Ferum Germanicarum Scriptores aliquot insignes, Ed. J. Pistorius. 1745, I, p. 794.
[4]  VITERBO, Godofredo de. Pantheon; Ferum Germanicarum Scriptores aliquot insignes, Ed. J. Pistorius. 1745, II, p. 372.
[5]  MAILLY, Jean Pierier de. Chronica universalis Mettensis; Monumenta Germaniae Historica: Scriptores, XXIV, p. 514.
[6]  BOURBON, Estevão de. Diversis Materiis Praedicabilibus; Scriptores Ordinis Praedicatorum. 1719, p. 367.
[7]  ENGELHUSIUS, Teodorico. Chronicon; Scriptorum Brunsvicensia Illustrantium. Ed. G.G. Leibnitz. 1710, II, p. 1065.
[8]  BURCHARD, John. Liber Notarum, Rerum Italicarum Scriptores, Ed. L.A. Muratori, XXXII, pt. 1, vol. 1, p. 176.
[9] Chronica Minor; Monumenta Germaniae Historica: Scriptores, XXIV, p. 184.
[10] Flores Temporum; Monumenta Germaniae Historica: Scriptores, XXIV, p. 243.
[11]  DÖLLINGER, John. J. I. Von. Fables Respecting the Popes of the Midle Ages, 1871, p.44.
[12]  RHÖIDES, Emmanuel D.. Pope Joan – A Historical Study, 1886, p.82.
[13]  La statua delia papessa Joana; Bollettino della Commissione Arqueológica Comunale di Roma; XXXV; 1907; pág. 82-95
[14]  MUNTZ, Eugène. La Lègend de La Papesse Jeanne; La Bibliofilia, 1900, pt. II, p. 333.
[15]  PARDOE, Rosemary; PARDOE, Darroll. A Papisa Joana, o Mistério da Mulher Papa. Ibrasa, 1990, p. 69.
[16]  Ibid, p, 71.
[17]  Ibid, p. 73, 75.
[18]  LATOURETT, Kenneth Scott. Uma História do Cristianismo. Hagnos, 2006, Volume I, pp. 361-919
[19]  OCKHAM, Willian de. Opera Politica (1963), II, p. 854.
[20]  CAPGRAVE, John. Ye Solace of Pilgrimes, 1911, p. 74.
[21]  BREWYN, Willian. A XVth Century Guide Book to The Principals Churches of Rome, 1933, p. 33.
[22]  MUNTZ. Eugène. Op. cit. p, 330.
[23]  HAEMERLEIN, Felix. De Nobilitate et Rusticitate Dialogus, 1490, p. 99.
[24]  PARDOE, Rosemary; PARDOE, Darroll. Op. cit. p. 49.
[25]  L’ENFANT, James. The History of the Council of Constance, 1730, I, p. 340.
[26]  DURRELL, Lawrence. Papisa Joana. Record, 1954, p. 5-10.

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