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O gatinho que sonhou ser leão

Tudo parecia indicar que seus sonhos se concretizariam, contudo, aquele bando não atendia aos seus pedidos.

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Gato que sonhou ser leão
Gato que sonhou ser leão (Foto: Direitos Reservados/Deposiphotos)

Era um dia comum naquela Floresta de Novo Verde. Os animais realizavam seus afazeres normalmente. O Urso irritava as abelhas em busca de mel. Os passarinhos namoravam em seus ninhos. O Macaco fazia graça para os tatus. As cigarras cantavam enquanto as formigas armazenavam alimento. A Coruja preparava o discurso para a reunião florestal daquela noite, isso, antes de dormir um pouco mais. A Tartaruga treinava para outra vez desafiar o Coelho numa corrida.

Enquanto tudo isso ocorria, o Leão descansava. Era temido por todos. Ele mesmo redigiu as regras daquela região. Todos o obedeciam, o que era requisito para manterem-se sob seus cuidados em caso de ataques de animais desconhecidos. Exímio predador e protetor de seu território, sob sua liderança a Floresta sofreu apenas uma tentativa de invasão. Falida! O leão lutou bravamente e impediu que os invasores adentrassem à floresta. Embora por vezes rude, tinha um coração bondoso, dedicado. Estava atento às necessidades de todos os integrantes daquela floresta. Era um ambiente rico em recursos naturais: rios e cascatas, frutos doces e suculentos. Um verdadeiro paraíso. Parecia-lhes um dia comum, todavia, marcaria a mudança da paz para uma completa confusão.

Quem imaginaria que um pequeno gatinho, preguiçoso e dengoso, residente da cidade grande, usuário de todas as regalias que apenas os seus donos eram capazes de lhe conceder, teria um surto após ouvir programas televisivos de tagarelantes autointitulados músicos, os quais amavam repetir o jargão “você pode ser o que quiser”, chegaria à floresta para revolucioná-la? Gafrieco, assim nomeado por seus tutores, era fã das séries sobre safaris africanos e alimentava as esperanças de tornar-se um leão destemido. Nem que fosse um leão branco, já que era essa a tonalidade de seus pêlos. Desejava ser o líder de um reino. Ansiava ampliar suas regalias, detestava ter de enterrar seus excrementos. Pensava que como rei, poderia determinar que outro fizesse esse trabalho sujo.

Numa manhã de sábado, enquanto seus donos ainda labutavam, o Gafrieco, inspirado pelo novo ritmo do pop star Paco Avatar, determinou-se a sair de casa. Caminhou por longas horas. Já tarde, deitou-se sob uma marquise, estava cansado e sentia fome. Até cogitou a possibilidade de retornar, mas era tarde, já havia se perdido. Lembrou-se apenas que há aproximadamente quatro horas não deixava rastro de sua passagem; primeiro para que não pudessem encontrá-lo, segundo para que no arrependimento não retornasse.

Mesmo assim, pensou em descansar um pouco e tentar voltar a casa quando foi surpreendido por um bando de animais, que a princípio não conseguiu identificar, eram um misto de cães ou gatos com diversas outras espécies. Eles literalmente eram o que queriam ser, numa versão adaptada, por consequência das dificuldades encontradas na rua. Lá viviam, na rua. Caçavam diariamente o alimento já fétido e morto. Em maioria eram ríspidos, gananciosos e mesquinhos, gabavam-se por suas formas de vida. Rejeitavam tudo que se opunha às suas formas de viver. Tratavam de nomeá-los intransigentes, mas eles mesmos não negociavam sequer a escuta de um oponente numa discussão, sobre quaisquer que fossem as motivações.

Escondiam-se da carrocinha. Um, talvez dois, ou três atrevidos ousaram enfrentá-la sob o argumento de serem animais selvagens de grande porte, mas foram vencidos. Alegaram transanimalfobia. A carrocinha parecia-lhes fundamentalista, apegada às leis vigentes, então, formaram um movimento para combatê-la, ao passo que percebiam a necessidade de ir além: combater às leis, ocupar espaços e exigir visibilidade. Queriam sair da penumbra dos becos quase fúnebres, onde escolheram morar, e migrar para os holofotes que já iluminavam seus ídolos precursores.

Gafrieco envolveu-se com eles. Esqueceu sua casa, tratou de engavetar as saudades das boas rações que lhes eram servidas e dos carinhos ao fim da tarde. Atraia-se cada vez mais pela ideia de tornar-se um leão. Seria o líder do grupo. Teria quem enterrasse seus excrementos e buscasse alimentos apetitosos para servi-lo. Tudo parecia indicar que seus sonhos se concretizariam, contudo, aquele bando não atendia aos seus pedidos. Conheciam profundamente as técnicas de persuasão usadas pelo branco e não mais felpudo Gafrieco. Ensinaram-no tudo, mas as discussões pelo poder os afastavam. Viviam em constante competição. Até que o pequeno e arredio gato decidiu caminhar um pouco mais em busca de um lugar onde pudesse ser rei e, assim, chega-se ao início dessa história.

Era um dia comum na Floresta de Novo Verde, os animas realizavam seus afazeres normalmente quando foram surpreendidos por aquele pequeno animal, distinto dos demais daquele habitat. Amedrontados, iniciaram um barulho capaz de despertar a Coruja e o Leão de seus sonos matinais. O Leão rugiu fortemente, assim, calou os demais que já haviam buscado abrigo no centro da floresta, o lugar de refúgio projetado pela senhora Coruja. O Gafrieco chegou cabisbaixo e ofegante. O Leão percebeu que não seria uma ameaça. A Coruja iniciou o questionário, ele respondeu apenas que estava cansado, queria água e um pouco de comida. Trêmulo, o Coelho, superando seu próprio recorde e deixando enciumada a Tartaruga, levou-lhe um pouco de água e comida e retornou para junto às patas do Leão.

Aos poucos, o Gafrieco ganhou a confiança e admiração de muitos. Era um gato sofisticado, vivido, de conhecimento notório. Utilizou suas técnicas de argumentação e fora indicado para compor o Conselho Deliberativo da Floresta. A Coruja, o Leão e a Formiga possuíam ressalvas, mas não quiseram posicionar-se contrários aos membros da floresta por quem sentiam grande estima. Pouco a pouco, os demais animais foram contagiados pelas ideias do Gafrieco e cada um dizia que seria o que quisessem ser.

A Tartaruga logo autoproclamou-se um coelho, dizia ter velocidade ímpar e imperceptível aos olhos dos invejosos. O Macaco dizia-se humano e inventou uma nova língua, o que dificultou a comunicação com os demais animais e gerou uma pane na distribuição de remédios, pois ele era o enfermeiro da Floresta. O Urso declarou-se peixe, passou a viver doente, uma vez que não saia do rio, emagreceu por comer apenas larvas e alegava perseguição das aves as quais se defendiam ao afirmar serem tatus e iam às bordas dos rios apenas para beberem água.

A Coruja convocou uma reunião de urgência com a Formiga e o Leão. O caos estava instaurado. Sentia-se culpada e clamava aos amigos uma solução. A Formiga disse que o Gato era um preguiçoso e estava abusando de seus colegas, nem mesmo seus excrementos enterrava, não plantava, não colhia. Os alimentos eram-lhe oferecidos em seu lugar de repouso e os animais pareciam gratos a ele por suas palavras de estímulo.

Estão loucos! Rugiu o Leão. O pior está acontecendo, disse a Coruja, estão dizendo que o Gafrieco é um Leão, forte e corajoso e que não necessitam mais de sua proteção, pois ela lhes é muito pesada. Você não reconhece os sonhos e desejos dos animais que habitam aqui. Jamais os impus algo, retrucou o Leão. A Formiga dirigindo-se à Coruja questionou quem havia lhe contado essas coisas. A Coruja contestou: um passarinho contou-me, ele é um dos poucos que não foi atingido por essas ideias insanas do Gato.

Enquanto conversavam, um tumulto se formou na frente da árvore central. Todos os animais descompassados exigiam a expulsão do Leão, Coruja e Formiga da comunidade. Era tanto barulho de bicho imitando outros que mal conseguiam dialogar. O Urso dizia que estava sem ar, precisava retornar ao rio. A Tartaruga reclamava a perda de tempo em que poderia estar treinando para a próxima competição de atletismo para coelhos. A bicharada toda estava agitada e os membros do Conselho Deliberativo da Floresta não conseguiram sequer expor uma única palavra de defesa.

Foram conduzidos para fora da floresta e no mesmo instante o gato foi proclamado rei. Festejaram até o sol raiar. Os ex-conselheiros caminharam durante toda a noite e não sabiam para onde ir, dedicaram sua vida à floresta e não sabiam sequer como comportar-se fora dela.

A Formiga enroscada na juba do Leão lamentava tudo e cogitava planos. A Coruja culpava-se por negligência. O Leão calado ouvia-as sem saber o que responder. Quebrou o silêncio algum tempo depois quando ponderou e disse: seremos nós a nossa floresta, encontraremos um lugar para ficarmos. Seguiram e sem perceberem foram avistados pelos antigos desertores que outrora tentaram invadir a Floresta de Novo Verde. Estão cabisbaixos, o que será que está acontecendo? Questionou um tigre do bando. Há comentários que um gato da cidade assumiu o posto do Leão dizendo ser leão e os demais animais os expulsaram – contestou uma das ienas. “Um gato será sempre um gato, não importa que se ache um leão. Sua força e astúcia são de um gato, ainda que use juba. Vamos lá, hoje teremos um banquete”, pontuou o líder dos desertores.

Serva do Cristo Vivo, é casada com Diógenes Rocha e mãe de Luiza, Adonai e Maria Júlia. Amante da literatura, é escritora. Formada em Letras, pós-graduada em Linguística. Servidora pública como professora do Estado de Pernambuco.

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