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Luto interditado e seus desdobramentos

O espírito do homem o sustenta na doença, mas o espírito deprimido, quem o levantará? (Provérbios 18:14)

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Jovem chorando na janela (Jeremy Bishop / Unsplash)

“Quando Jesus viu Maria chorar, e o povo também, sentiu profunda indignação e grande angústia. “Onde vocês o colocaram?”, perguntou. Eles responderam: “Senhor, venha e veja”.
Jesus chorou. As pessoas que estavam por perto disseram: “Vejam como ele o amava!”.”  (João 11:33-36)

Em tempos de pandemia o sentimento de muitos é de luto. E a perda não se limita apenas à ausência física de uma pessoa querida. As incertezas do futuro, separações, perdas econômicas e de atividades significativas como as relacionadas ao trabalho, danos à saúde, suspensão ou adiamento de eventos, cerimônias e celebrações importantes podem ocasionar, também, a vivência de um luto atual ou antecipado.

As mudanças dos protocolos de velórios e enterros para manejo dos corpos somadas à interdição do contato social, que impossibilita os funerais e as cerimonias religiosas, poderão dificultar o fechamento de um ciclo.

O luto pode ser compreendido como uma crise que desencadeia forte instabilidade e que desorganiza a vida da pessoa e, apesar de não ser uma enfermidade, pode trazer sintomas físicos e psíquicos que necessitam de atenção e cuidado.

O velar do corpo faz parte de uma etapa de um ritual importante para a despedida e para homenagear a pessoa que já não está mais entre nós. Chorar, dizer adeus é fundamental, pois têm um valor simbólico que auxilia na construção de significado e oferece conforto ao enlutado. Subtrair esse momento, por certo, trará implicações psíquicas e intensificará a dor e o sofrimento das pessoas.

Classicamente, o luto é composto por cinco fases ou cinco estados mentais que atuam como referência para compreendermos os sentimentos que podem nos acometer durante este processo. Esses estágios não são lineares e podem não acontecer na ordem descrita, também não são um mapa, mas nos dão um parâmetro de como acessar esse mundo de dor e sofrimento. 

Fases do luto:

1ª) Negação

A negação é o primeiro dos cinco estágios do luto e nos ajuda a sobreviver à perda.

O fato de negar a realidade de que alguém já não está mais conosco por causa da morte permite amortecer o golpe e adiar um pouco a dor que essa notícia traz. Embora pareça uma opção pouco realista, tem sua utilidade para o nosso organismo, já que ajuda muito para que a mudança brusca de humor não nos prejudique.

2ª) Raiva/Revolta

A raiva/revolta é o ressentimento que aparece nesta fase e é resultado da frustração que vivenciamos ao nos darmos conta de que a morte ocorreu e que não há nada que possamos fazer para corrigir ou reverter a situação.

O luto produz uma tristeza profunda que não pode ser aliviada, porque a morte não é reversível. Assim, nesta fase de crise, o que domina é o rompimento, e o choque de duas ideias (a de que a vida é desejável e a de que a morte é inevitável) junto com uma forte carga emocional; por isso é comum que aconteçam explosões de raiva.

3ª) Negociação/Barganha

Nesta fase, tenta-se criar uma ficção que permite ver a morte como uma possibilidade que podemos impedir. De alguma forma, criamos a fantasia de estarmos no controle da situação.

Na Negociação/Barganha – o que pode ocorrer antes ou depois da morte – fantasiamos a ideia de reverter o processo, e buscamos estratégias para tornar isso possível. Por exemplo, é comum as pessoas tentarem negociar com Deus, “entidades divinas” ou “sobrenaturais” para fazer com que a morte não aconteça em troca de mudar o estilo de vida e “transformar-se”.

4ª) Depressão/Tristeza

Na fase da depressão deixamos de fantasiar realidades paralelas e nos voltamos ao presente com uma profunda sensação de vazio porque nos conscientizamos plenamente de que a pessoa querida já não está mais entre nós.

Aparece uma forte tristeza, que não pode ser mitigada mediante desculpas nem mediante a imaginação, e que nos leva a entrar em uma crise existencial ao considerar a irreversibilidade da morte e a falta de incentivos para continuar vivendo em uma realidade em que a pessoa querida não está mais. Nesta fase é normal nos isolarmos e nos sentirmos mais cansados, incapazes de conseguir pensar na ideia de que vamos sair desse estado de tristeza e melancolia.

5ª) Aceitação/Resolução

Geralmente, esta é a última etapa do processo, na qual a pessoa volta à “vida normal”.

É o momento em que se aceita a morte do ente querido, quando aprendemos a continuar vivendo em um mundo que ele não estará mais, e aceitamos que esse sentimento de superação faz bem. Em parte, essa fase se dá porque o traço, que a dor emocional do luto causa, vai se extinguindo com o tempo; é uma fase necessária para reorganizar ativamente as próprias ideias e confortar o nosso esquema mental.

Quando estas fases são suprimidas por um luto interditado, não vivenciado, a pessoa pode entrar no que chamamos de luto complicado que se caracteriza por uma desorganização prolongada que impossibilita a retomada das atividades com qualidade e a aceitação da perda, também por uma profunda tristeza e, muitas vezes, disfuncionalidades que impendem a pessoa de gerir a vida como antes.

O luto complicado é a exacerbação do luto ao ponto de a pessoa sentir-se sobrecarregada; é como se ela ficasse congelada nesse estado, não apresentando melhora com o tempo. A principal características de um luto complicado é a sua duração e a intensidade.

De fato, estamos vivenciando um momento no qual temos de escolher entre o ruim e o menos ruim. E, infelizmente, teremos de lidar com as consequências dessas escolhas.

Algumas estratégias de suporte e apoio emocional no enlutamento

– Se o funeral for adiado ou realizado num período muito curto, pode-se criar um memorial em casa. Uma sugestão seria reservar um tempo olhando as fotografias do falecido, relembrando momentos importantes e marcantes da vida da pessoa que partiu compartilhando estes momentos com outras pessoas queridas.

– Preparar um livro de visitas on-line, para amigos e familiares assinarem e expressarem seus sentimentos. Os familiares geralmente encontram conforto ao ler essas mensagens, e disponibiliza-las on-line simplifica o acesso quando se sentirem saudosos ou tristes.

– Se a presença física não for possível, podem-se realizar despedidas remotas. Uma das formas seria encorajar os amigos e familiares a expressarem seu luto por meio do uso de tecnologias como mensagens de voz, ligação por vídeo, e-mails, SMS e outros para a despedida aos entes queridos.

– Organização de homenagens coletivas a todas as pessoas sepultadas ou cremadas de uma mesma comunidade, igreja ou organização, após o término da pandemia.

– As igrejas podem desenvolver rituais fúnebres alternativos, como cultos virtuais, homenagens virtuais, musicais, fotográficas entre outras, que auxiliem no processo de despedida.

– Fortalecimento do acolhimento das redes religiosas e/ou espirituais do falecido e dos enlutados.

– Pastoreamento virtual dos enlutados e familiares, mantendo uma frequência de encontros para orações, leitura e meditação das Escrituras Sagradas.

– Cuidado à rede psicossocial às pessoas em processo de luto. Se um familiar, ou amigo estiver com dificuldade em lidar com a situação é importante encaminhar esta pessoa para um profissional de atenção psicossocial, sejam líderes comunitários, religiosos, ou profissionais da saúde mental. mesmo dentro da própria rede.

Importante pontuar que somos indivíduos singulares e irrepetíveis e, por isso, cada um de nós vive o luto com a sua peculiaridade, não tendo, portanto, maneiras melhores ou piores, ou uma sequência rígida que uniformizam o processo.

O luto deve ser compreendido como uma experiência de ordem pessoal e única para cada um de nós, e assim, deve ser reverenciado e respeitado.

O espírito do homem o sustenta na doença, mas o espírito deprimido, quem o levantará? (Provérbios 18:14)

Pastor, psicólogo (CRP 43974-6). Doutor em Psiquiatria (FMUSP). Mestre em Ciências Médicas (FMUSP). Especialista em aconselhamento, professor na Faculdade Teológica Batista de São Paulo. Visite: www.gaip-saude.com.br

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