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Lições do deserto

A ida ao deserto pode significar a oportunidade para nos libertarmos daquilo que desagrada a Deus.

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Êxodo 15:22-27 relata-nos o início dos anos que os hebreus passaram no deserto do Sinai, antes de entrarem na terra que Iavé prometera ao patriarca Abraão.

Essa jornada, que durou quarenta anos, é comparada por alguns a esta vida terrena de lutas e dificuldades constantes. Mas ainda assim, há grandes lições que podemos retirar de tal experiência. Vejamos algumas delas.

Movimento constante

A vida cristã funciona segundo o princípio do precário, o que implica pouco apego à terra e às coisas materiais que esta vida nos proporciona. E se o reino de Deus não é deste mundo, como o próprio Cristo afirmou (João 18:36), também o cristão não deve ter a pretensão de estabelecer qualquer espécie de reino aqui (nem mesmo em nome do Senhor), pois sabe que está de passagem.

Por outro lado, o cristão não pode parar. Do mesmo modo como o povo do Antigo Israel iniciava ou suspendia a marcha de acordo com a nuvem de dia ou a coluna de fogo nocturna, tomando-as como sinal de Iavé no controlo da sua jornada, também os nossos passos devem ser pautados pela Palavra revelada: “Lâmpada para os meus pés é tua palavra, e luz para o meu caminho” (Salmo 119:105). 

Se estás a atravessar o deserto não pares, não desistas, segue a nuvem.

Frugalidade

Durante os anos do deserto os israelitas transportavam consigo apenas os artigos, objectos e artefactos essenciais, não havendo lugar para o supérfluo. Uma excelente figura do que deve ser a vida cristã, despojada de luxos e mordomias.

O templo do deserto (tabernáculo) era portátil, tal como as casas das famílias que eram simples tendas à maneira dos nómadas, podendo montar-se e desmontar-se rapidamente a fim de retomar a marcha. Eles precisavam de aprender a confiar inteiramente no seu Deus, e também de aprender que é preferível a instabilidade com a presença de Deus na nossa vida do que a estabilidade sem Ele.

O deserto pode ser uma aprendizagem do que é essencial na nossa vida.

Unidade

A cartografia do acampamento, isto é, a disposição das tendas no arraial, por famílias e por tribos, fala-nos de ordem. “Mas faça-se tudo decentemente e com ordem”, escreveria séculos mais tarde o apóstolo Paulo à comunidade cristã de Corinto, face à confusão reinante (1 Coríntios 14:40). As famílias estavam juntas e enquadradas pelas respectivas tribos.

O tabernáculo assumia-se no meio do arraial, cumprindo a sua função de centro de adoração comunitária. Creio mesmo que a tenda do Lugar Santo se elevava acima do perímetro do tabernáculo de modo a poder ser visualizada a partir de qualquer tenda familiar, logo que qualquer israelita saísse da sua tenda. Representava Deus no centro da vida pessoal e comunitária.

O deserto ensina-nos a ficar juntos, em comunhão, a evitar a desunião e a ver Deus no centro da vida.

Libertação

A passagem do Mar Vermelho a pé enxuto representa o corte com o passado e com os mais de quatro séculos de presença no Egipto. Ainda que os primeiros tempos tenham sido bons, em vida de José, a verdade é que aquela não era a terra que Iavé tinha destinado para o povo da Aliança. E o facto é que nunca estamos bem quando estamos fora do lugar que Deus nos destinou.

Além do mais o Egipto simboliza a escravidão que era preciso vencer, mas também a libertação da opressão espiritual dos deuses estranhos dos egípcios, e duma atmosfera espiritual que não permitia aos hebreus receber a revelação do Deus dos seus antepassados, o que apenas veio a acontecer no deserto do Sinai, com a atribuição da lei de Moisés e restante revelação.

A ida ao deserto pode significar a oportunidade para nos libertarmos daquilo que desagrada a Deus.

Note-se que, apesar de tudo, o deserto tem os seus segredos, a sua beleza específica, e ensina-nos grandes lições que são indispensáveis à vida espiritual.

Nasceu em Lisboa (1954), é casado, tem dois filhos e um neto. Doutorado em Psicologia, Especialista em Ética e em Ciência das Religiões, é director do Mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, em Lisboa, coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo e investigador.

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