estudos bíblicos

Introdução ao livro de Levítico

Autoria, data, canonicidade, propósito do livro escrito por Moisés.

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Bíblia aberta no livro de Levítico (Gospel Prime)

Na Bíblia Hebraica, o título do livro é exatamente a primeira palavra do livro, wayyiqrã, “E ele [o Senhor] chamou”. Como veremos ao longo destes três meses, de fato o livro de Levítico é um chamado de Deus para a adoração em santidade, seja no culto, seja no viver cotidiano.

O título “Levítico”, como temos em português, vem da tradução grega do Antigo Testamento, a famosa Septuaginta[1], leuitikon, e significa “relativo aos levitas”, tentando resumir assim o público-alvo (sacerdotes levitas) e o propósito do livro (estabelecer normas para os líderes do povo).

Todavia, o título em hebraico parece fazer mais justiça ao livro como um todo do que o nosso título derivado do grego. Christopher Wright destaca que por duas razões, o título “Levítico” não é totalmente adequado:

  1. Primeiro, porque nem todos os membros da tribo de Levi eram, de fato, sacerdotes, mas somente aqueles de uma família específica dentro da tribo (descendentes de Arão);
  2. Segundo, porque boa parte do livro é dirigida aos israelitas e não apenas aos sacerdotes, tratando de questões de sua vida no que diz respeito à adoração, moralidade na família, vida social e em comunidade, questões econômicas, etc. Nas palavras de Wright, “O livro era tão importante para os ‘leigos’ quanto o era para os ‘clérigos’” [2].

Autoria, data e canonicidade

Embora existam estudiosos que rejeitam a autoria mosaica do livro de Levítico, e que insistam numa redação posterior ao exílio babilônico, a tradição judaica e também a cristã tem atribuído a Moisés a origem e redação deste livro, por volta de 1440 a. C., quando o povo israelita iniciava sua peregrinação no deserto, após a fuga do Egito.

Charles Ryre, em sua famosa Bíblia de Estudo Anotada Expandida, destaca que em 56 ocasiões neste livro se diz que o Senhor falou à Moisés palavras que logo eram anotadas por ele mesmo, garantindo seu registro para aquele povo e para as gerações posteriores (por exemplo, 4.1; 6.1; 8.1; 11.1; 12.1, etc.).

No mais, o próprio Senhor Jesus fez referência ao livro de Levítico, sugerindo ser ele um livro de Moisés (Mc 1.44; Cf. Lv. 13.49). E o apóstolo Paulo fez a seguinte menção a um trecho de Levítico na carta aos Romanos: “Ora, Moisés descreve a justiça que é pela lei, dizendo: O homem que fizer estas coisas viverá por elas” (Rm 10.5; Cf. Lv 18.5). É difícil não aceitar, em vista destes exemplos, que Jesus e os apóstolos tinham em mente Moisés como autor do Pentateuco.

São aproximadamente 90 citações diretas ou alusões feitas pelo Novo Testamento ao livro de Levítico, o que demonstra a total aceitação deste livro como parte do cânon [3] do Antigo Testamento nos dias dos apóstolos. Mas se voltarmos no tempo, veremos que desde Moisés e especialmente nos dias dos profetas, todo o Pentateuco era tido como Palavra do Senhor. Portanto, como os demais 38 livros do Antigo Testamento, Levítico gozava de inspiração divina, inerrância e infalibilidade.

“A tua palavra é a verdade”, disse Jesus em oração ao Pai (Jo 17.17). E no que diz respeito à Levítico, este livro está saturado de palavras de Deus. Como destacou Andrew Bonar, “não há outro livro como Levítico, com tantas palavras proferidas pelo próprio Deus. Ele é o orador direto em quase todas as páginas, e suas palavras foram registradas exatamente como as pronunciou” [4] Tal fato só pode inclinar-nos a aceitar a autoridade canônica deste livro e sua procedência divina.

A razão do livro

De modo resumido podemos dizer que os objetivos deste livro são:

  1. estabelecer um manual para os sacerdotes e levitas traçarem suas responsabilidades quanto à adoração (que tipificava em sua liturgia a obra expiatória a ser realizada por Jesus Cristo);
  2. trazer orientações para a santificação do povo hebreu, que acabara de fugir da escravidão no Egito, onde viveram por quatro séculos;
  3. preveni-los da corrupção moral e da idolatria que permeavam a terra de Canaã para onde o povo estava sendo guiado,
  4. e constitui-los uma nação santa que representasse as primícias de Deus em toda terra e para toda a terra (Israel tinha uma vocação missionária e precisaria ser lapidado por Deus).

Santidade e sacrifício: palavras-chave

A grande mensagem de Levítico é a santidade de Deus, conforme expresso neste versículo muito conhecido: “Santos sereis, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19.2). Pedro fez referência a este texto (1Pe 1.15,16). Ser santo significa ser “separado” e “consagrado” – separado do uso comum para o uso religioso e consagrado ao serviço do Senhor. Há, portanto, um forte diálogo entre os ensinos mosaicos para a santidade do povo hebreu e os ensinos apostólicos sobre a santidade na vida do cristão – “sem santificação ninguém verá o Senhor” (Hb 12.14).

Os sacerdotes deveriam fazer “diferença entre o santo e o profano e entre o imundo e o limpo” (Lv 10.10), e ocupar-se no ensino da santidade ao povo hebreu como uma de suas principais atribuições. Mas como um povo carregado de vícios e impurezas do Egito poderá apresentar-se diante do Deus santo para adorá-lo?

O pecado do povo precisava ser tratado. Como o homem não pode remover sua própria sujeira espiritual (Cf. Sl 65.3, NVI), devido o pecado herdado em Adão e sua inclinação para o pecado trazida desde a concepção (Sl 51.5; Cf. Gn 8.21), Deus estabeleceu o sacrifício substitutivo como forma de expiar os pecados, para que os homens pudessem ser santificados diante de Deus e não consumidos pelo fogo de sua ira.

O leitor atento, perceberá que dentre os 27 capítulos de Levítico, ao menos os dez primeiros são dedicados a assuntos ligados ao sacrifício e à santidade na adoração ao Senhor. N. Kiuchi explica essa ordem: “O fato de que os capítulos que tratam da santidade de coisas como os altares vêm primeiro em Levítico mostra que deve ser dada prioridade à criação de um ambiente propício para a presença santa de Deus” [5].

Cristo prefigurado em Levítico

Quer fossem bois jovens, grãos, cabritos ou ovelhas, as ofertas sacrificiais tinham de ser perfeitas, sem defeito ou manchas, simbolizando o sacrifício perfeito e definitivo que estava por vir – Jesus Cristo, “o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29), e que “é a propiciação pelos nossos pecados. E não somente os nossos, mas os do mundo inteiro” (1Jo 2.1,2).

A verdadeira adoração cristã tem no sacrifício vicário de Cristo seu elemento fundante. Não haveria adoração aceitável a Deus se não houvesse o sacrifício de Cristo! Não há aproximação do Pai, se não passarmos primeiro pelo Filho – “ninguém vem ao Pai a não ser por mim” (Jo 14.6). Esta é uma das mais vigorosas declarações de Cristo, que o identificam como o controle de fronteira para o santuário de Deus que é a Igreja e para o santíssimo lugar que é a própria presença de Deus habitando no crente aqui e o desfruto da glória suprema na eternidade porvir.

Como adverte William MacDonald, “se entendermos as instruções [de Levítico] como meros detalhes descritivos dos rituais de sacrifício dos judeus da Antiguidade ou como leis para manter a santidade na vida cotidiana e a separação em relação aos povos pagãos, limitaremos a benção advinda de uma compreensão correta dessas instruções. Todavia, se percebermos que todos os detalhes sobre os sacrifícios simbolizam a perfeição de Cristo e sua obra, então haverá muito sobre o que meditar”[6]. Cristo, portanto, deverá ser nossa chave hermenêutica para o livro de Levítico, sem, contudo, deixarmos de perceber seu valor histórico e legal para as gerações israelitas que precederam o advento do Senhor Jesus.

Manual do sacerdote

Embora seu conteúdo não diga respeito exclusivamente ao ofício sacerdotal, há predominante instrução para a liderança religiosa de Israel, especialmente os levitas e sacerdotes.

Embora sacrifícios já fossem praticados desde os dias da família de Adão (vê-se o cap. 4 de Gênesis, as ofertas de Abel e Caim), passando por Noé na reconstituição da raça humana, e pelos patriarcas de Israel, aquele povo recém-fugitivo do Egito e que até então não tinha uma tradição escrita (os ensinos até Moisés eram passados oralmente de pai para filho) nem uma identidade própria necessitava de orientações:

  1. quanto ao correto sacrifício a ser oferecido a Deus
  2. quanto ao relacionamento pessoal e coletivo com o Senhor
  3. quanto ao relacionamento dos hebreus uns com os outros
  4. quanto ao relacionamento com os povos pagãos que habitavam a terra de Canaã, cujos costumes eram repugnantes para Deus
  5. e como usufruiriam da terra e de seus recursos naturais

Portanto, junto de Êxodo, Números e Deuteronômio, Levítico constitui-se um verdadeiro manual de culto e conduta para as lideranças de Israel e também para todo o povo que devia neles se inspirar. Christopher Wright assim resume a estrutura deste livro-manual:

“Levítico começa com o que é, na prática, um manual de sacrifícios, primeiro explicando, em termos leigos, em que momentos do sacrifício todos os envolvidos deviam participar, que tipos de animais eram adequados para que tipos de propósitos e o que se devia fazer com eles etc. Em seguida, apresenta algumas regras a mais para o bem dos sacerdotes. (…) Para os israelitas, que viviam debaixo da aliança, a vida envolvia muito mais do que a adoração apropriada e a pureza ritual, de sorte que o restante do livro passa a estabelecer uma ampla variedade de responsabilidades pessoais, familiares, sociais e econômicas, todas elas com o propósito de capacitar Israel a manter aquele caráter nacional distintivo (santidade), para o qual Deus os havia criado” [7]

Conclusão

Como bem pontua a Bíblia de Estudo Arqueológica NVI, em sua introdução ao livro de Levítico, “O muro que dividia a adoração judaica da adoração cristã foi mais tarde removido pelo convite de Deus à fé em Cristo e em sua obra consumada na cruz (Gl 3.28; Ef 2.11-22), de modo que as leis de Levítico não mais precisam ser observadas. No entanto, os princípios morais que elas expõem ainda se aplicam aos nossos dias”.

Pensando nas Escrituras do Antigo Testamento, o apóstolo Paulo afirma: “Porque tudo o que dantes foi escrito, para nosso ensino foi escrito, para que pela paciência e consolação das Escrituras tenhamos esperança” (Rm 15.4).

Em virtude disso, há uma razão muito forte para atentarmos para este livro, como os apóstolos e evangelistas atentaram (veja seu uso constante como pano de fundo na Carta aos Hebreus!). Embora não sejamos levitas, fomos constituídos por Cristo “reis e sacerdotes” (Ap 1.6; 5.10), e há princípios morais e cúlticos em Levítico que se aplicam também a nós, Igreja do Senhor.

Notas e referências

[1] Septuaginta é a designação da mais antiga tradução em grego do Antigo Testamento, feita para uso da comunidade de judeus do Egito no final do século III a.C. e no II a.C.. Como teria sido realizada por 72 tradutores, chama-se “a versão dos setenta”, donde vem o título Septuaginta (também expressa simplificadamente pelos algarismos romanos: LXX). Esta tradução grega do AT foi bastante conhecida nos dias de Cristo, sendo, ao que sugerem os estudos da Exegese bíblica, bastante utilizada pelos redatores do Novo Testamento.
[2] Christopher Wright. Comentário Bíblico Vida Nova, Vida Nova, p. 192.
[3] Cânon ou cânone das Escrituras é a lista de textos (ou “livros”) religiosos que uma determinada comunidade aceita como sendo inspirados por Deus e autoritativos. A palavra “cânon” vem do termo grego κανών, e significa literalmente “régua” ou “vara de medir”.
[4] citado por William MacDonald. Comentário Bíblico Popular, AT, Mundo Cristão, p. 87
[5] N.Kiuchi. Novo Dicionário de Teologia Bíblica, Vida, p. 220.
[6] William MacDonald. op. cit.
[7] Christopher Wright. op. cit.

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