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estudos bíblicos

Havia um anjo no tanque de Betesda?

“…esperando o movimento da água. Porquanto um anjo descia em certo tempo ao tanque, e agitava a água; e o primeiro que ali descia, depois do movimento da água, sarava de qualquer enfermidade que tivesse”

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Jesus Cristo no Tanque de Betesda (Reprodução)

Quem nunca ouviu uma pregação sobre o paralítico junto ao tanque Betesda, em Jerusalém, baseada no quinto capítulo do evangelho de João?

A cura daquele que era paralítico havia 38 anos é um dos mais conhecidos e proclamados milagres de Jesus.

Mas o propósito deste post é chamar sua atenção para esse trecho final do versículo 3 e todo o versículo 4, que diz: “…esperando o movimento da água. Porquanto um anjo descia em certo tempo ao tanque, e agitava a água; e o primeiro que ali descia, depois do movimento da água, sarava de qualquer enfermidade que tivesse” (versão Almeida Revista e Corrigida, 1995)

Há alguns indícios exegéticos de que esse trecho não seja original, mas um enxerto feito posteriormente ao texto escrito pelo apóstolo João, e que, portanto, não deveria ser tão enfatizado em nossas homilias sobre a cura deste paralítico. Explico.

Inclusão dos versículos 3b-4

O Dr. Wilson Paroschi [1], uma das maiores autoridades no mundo hoje sobre Crítica Textual, nos informa que de acordo com o registro textual, somente a partir do quinto século (quando obviamente nenhum apóstolo mais estava vivo e editando seus escritos) é que a passagem que fala do anjo movimentando as águas do tanque começa a aparecer na tradução manuscrita grega, a língua em que o Novo Testamento foi originalmente escrito.

Embora Tertuliano (160-220), um dos antigos pais da igreja, já fizesse menção ao anjo agitando as águas, parecendo dar sua aprovação a esta crença judaica popular.

Quanto à inserção desta tradição no texto bíblico, Paroschi sugere que “poderia ter decorrido, por exemplo, de alguma nota marginal destinada a explicar o v. 7 [de João 5], atribuindo a agitação das águas à visita periódica de um anjo” e que “não se deve descartar a hipótese de que a água do tanque tivesse propriedades terapêuticas e que curas de enfermidades reais ou imaginárias (psicossomáticas) tenham de fato sido li obtidas”.

Claro, a opinião do Dr. Paroschi apenas representa uma grande parte dos estudiosos cristãos, todavia, admitimos, ela não é unânime. Há também alguns exegetas defendendo a autenticidade desta passagem, como citados pelo erudito pentecostal Gordon Fee, em seu artigo On the Inauthenticity of John 5:3b-4 [2]. Para o próprio Fee, porém, assim como para Paroschi, há razões suficientes para “rejeitar a passagem como espúria”.

Aqueles que não têm muita afinidade com estudo das línguas originais da Bíblia, Crítica Textual ou manuscritologia, podem achar que “os teólogos estão querendo distorcer a Bíblia”. Não, não é isso. Pelo contrário: os comentaristas que rejeitam a autenticidade do trecho de João 5.3b-4 querem apenas separar o que é original, escrito pela pena e tinta de João (e, portanto, sob inspiração divina), do que é adicional (portanto, não original nem inspirado).

O problema com esse trecho

Se tomarmos o trecho de João 5.3b-4 como autêntico e original do apóstolo João, então teremos que explicar algumas questões de ordem textual e teológica:

  1. Por que esse trecho está ausente dos melhores e mais antigos manuscritos gregos?
  2. Por que em muitos manuscritos gregos que contém o versículo 4, a leitura está assinalada como duvidosa, mediante emprego de alguns sinais gráficos que demonstram a provável não-originalidade joanina dessa passagem?
  3. Como explicar a seletividade das curas e a disputa dos doentes? Não parece que admitida tal possibilidade, devemos também concordar com o egoísmo daquelas pessoas que buscavam a cura, querendo sempre serem as primeiras? Como diz o exegeta William Hendricksen, “Parece que a regra naquele tanque era: ‘Cada um por si’” [3]. Isso, definitivamente não expressa o caráter de Deus, o amor e a misericórdia que ele exige que tenhamos uns pelos outros.
  4.  Embora sejam espíritos ministradores ao nosso favor, é difícil encontrar respaldo neotestamentário para anjos promovendo cura de doentes, especialmente num período em que Cristo está presente pessoalmente e investindo seus discípulos de poder para curar os enfermos.

Movimento das águas causado por um anjo?

Ressalte-se que o que está em discussão não é se as águas daquele tanque eram ou não agitadas, afinal o versículo 7 do mesmo capítulo, traz a fala do paralítico, que queixava-se a Jesus de que não tinha ninguém que o colocasse no tanque “… quando a água é agitada…”.

De fato, um movimento diferente nas águas devia ser notado, para que os doentes começassem a se lançar em busca da cura. Entretanto, muitas razões naturais podem ser sugeridas para esse movimento intermitente das águas, sem necessariamente admitir a presença de um anjo agitador.

Também não está em questão o milagre efetuado por Cristo ao curar o paralítico, pois cremos piamente nesse registro joanino, e que o mesmo ele pode fazer hoje pelos que estão enfermos. Como cristão pentecostal posso dizer que rejeitar a originalidade dos versículos 3b-4 não implica em descartar a originalidade do milagre registrado em João 5.

A questão apenas é que, nas palavras do exegeta F.F. Bruce, “Não podemos creditar (ou debitar) ao evangelista esta informação sobre o anjo, mas provavelmente ela reproduz a crença popular sobre a causa das propriedades terapêuticas atribuídas à água” [4].

Traduções bíblicas modernas inclusive trazem sinais gráficos que sugerem a não-originalidade desta passagem. A Almeida Revista e Atualizada (ARA) e a Nova Almeida Atualizada (NAA), por exemplo, deslocam o final do versículo 3 para o início do versículo 4 e colocam todo o trecho em questão entre colchetes ([ ]), e a Nova Versão Internacional (NVI) coloca uma nota de rodapé informando que “A maioria dos manuscritos antigos não trazem essa frase [final do vers. 3] e todo o versículo 4”. O bom estudante e pregador da Bíblia deve, portanto, munir-se de várias traduções bíblicas para perceber esses detalhes.

Concluímos, de forma prática: no mínimo, dada a incerteza da origem do trecho de João 5.3b-4, não deveríamos, quando cantamos, ensinamos ou pregamos esse texto na igreja, dizer que “Deus vai enviar seu anjo para movimentar as águas” ou destacar a figura do anjo e de um suposto movimento sobrenatural das águas naquele tanque.

É melhor que foquemos na cura do paralítico através de Jesus Cristo e no poder do Espírito Santo. Aliás, é bom que se diga que Jesus não ajudou o paralítico a mergulhar no tanque para receber sua cura (o que poderia ajudar a validar aquela crença popular), antes deu-lhe a palavra de ordem para por-se de pé e carregar sua maca (v. 8), o que nos dá a certeza de que a cura procede não de anjos agitadores, mas de Cristo, que “levou sobre si as nossas enfermidades” (Is 53.4).

REFERÊNCIAS
[1] Wilson Paroschi. Origem e transmissão do texto do Novo Testamento, SBB, pp. 218-222
[2] Gordon Fee. On the Inauthenticity of John 5:3b-4, in The Evangelical Quarterly 54.4 (Oct.-Dec. 1982): 207-218.
[3] William Hendricksen. O Evangelho de João, Cultura Cristã, p. 255
[4] F.F. Bruce. João: introdução e comentário, Vida, p.114

Casado, bacharel em teologia (Livre), evangelista da igreja Assembleia de Deus em Campina Grande-PB, administrador da página EBD Inteligente no Facebook e autor de quatro livros.

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