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estudos bíblicos

Em defesa dos cristãos estudiosos

Estudar é uma forma de glorificar a Deus, já que tudo provém d’Ele mesmo.

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Pode parecer estranho que alguém tenha de escrever um texto em defesa dos cristãos estudiosos, mas no Brasil ainda precisamos de reflexões como esta, notadamente em alguns círculos evangélicos onde ser estudioso pode ser caracterizado como “frieza espiritual”, mesmo que o estudo se dirija a temas bíblicos e teológicos.

Antes de prosseguir, é importante tecer uma distinção: estou entre aqueles que se preocupam com a contaminação pseudo-intelectual esparramada frequentemente em cursos de Ciências Humanas, quando estudantes não muito maduros na fé acabam sendo atraídos por ideologias falsas (“progressistas”, utópicas, socialistas), incompatíveis com as Escrituras Sagradas. Estou bem certo de que precisamos lutar contra as “filosofias e vãs sutilezas”, como nos adverte o apóstolo Paulo (Cl 2.8). O problema de que ora cuido, porém, é outro.

Refiro-me, na verdade, à ideia equivocada de que o estudo conduz necessariamente a uma espiritualidade inferior. Usam-se em favor dessa tese textos bíblicos erroneamente interpretados, como “a letra mata, e o Espírito vivifica” (cf. II Co 3.6) e “[a] ciência incha, mas o amor edifica” (cf. I Co 8.1). No primeiro caso, o que temos é uma comparação paulina entre a Lei (o “ministério da condenação”) e a Graça (o “ministério da justiça”); no segundo caso, estamos diante de uma exortação, também de Paulo, contra a intolerância fundada no costume religioso.

Longe de possuir fundamento bíblico, a repulsa ao estudo pode se basear em fatores diversos, como ressentimento (ensejado algumas vezes pela falta de educação formal) e influências de diferentes espécies de dualismo, premissa filosófica que contempla a realidade como dividida em duas dimensões – o Sacro e o Profano (catolicismo); a matéria e o espírito (gnosticismo); o bem e o mal (maniqueísmo); o mundo sensível e o mundo das ideias (platonismo). Portanto, sem querer e sem saber, cristãos evangélicos podem reproduzir noções filosóficas dualistas.

E aqui vai mais uma distinção: é certo que existem o bem e o mal, a luz e as trevas, o espírito e a carne, Deus e o diabo, o céu e o inferno, os filhos de Deus e os filhos do maligno, mas todo esse contraste, que é real e registrado na Bíblia (como em I Jo), não pode conduzir à ideia de que as coisas boas e agradáveis a Deus são exclusivamente as espirituais e eclesiásticas, porque o mundo, criado por Deus, é bom (cf. Gn 1.1-31), bem como “toda boa dádiva” e “todo dom perfeito” procedem de Deus (cf. Tg 1.17) – é a isto que a teologia denomina “Graça Comum”.

Desse modo, compreendemos o “mandato cultural” (Gn 1.26-28) como a prerrogativa humana, conferida pelo Criador, de administrar os recursos naturais de maneira racional e proveitosa, para glória de Deus e bem-estar de todos. Bem por isso, têm origem no Senhor a cultura, o direito, a política, a técnica, a ciência, a tecnologia, a indústria, as artes, a vida em sociedade, sendo o Pecado a única coisa com a qual Deus não tem parte (não sei se preciso esclarecer, mas Deus também não tem parte com uma cultura pecaminosa, com uma política pecaminosa etc.).

Nesse sentido, estudar é uma forma de glorificar a Deus, já que tudo provém d’Ele mesmo. Além disso, a ciência não poderia existir sem o pressuposto de que o mundo se caracteriza por regularidade e coerência, o que aponta para a presença de um Ser Inteligente por trás de tudo o que existe. É por isso que até mesmo o cientista ateu glorifica a Deus quando produz ciência de qualidade, o que constitui uma grande ironia!

No campo evangélico pentecostal, em que estou inserido desde criança, não é raro um bom professor de escola dominical ser considerado “frio” porque valoriza o estudo das Escrituras e o emprego de vocabulário técnico, enquanto uma irmã um pouco mais entusiasmada passa a ser tida como espiritual porque faz sobejarem línguas estranhas em seu discurso. Cuida-se, na realidade, de um tipo de misticismo, a enxergar na glossolalia um sinal definitivo de espiritualidade sadia, dado que não compreendidas, ao passo que o professor, ao falar das grandezas de Deus no idioma comum, estaria usando de “sabedoria humana”.

Em alguma medida, meu ministério tem consistido na luta por um pentecostalismo que se reconheça por seus distintivos conservadores e ortodoxos, e não pelo anti-intelectualismo e outros vícios que alguns insistem em lhe emprestar.

A própria revelação registrada nas Escrituras exige manejo correto de regras e métodos hermenêuticos, a fim de que se obtenha uma exegese coerente do Texto Sagrado. Se a Bíblia foi escrita em idiomas conhecidos, isto deveria nos dizer alguma coisa, sendo o método histórico-gramatical uma ferramenta interpretativa condizente com a natureza da Palavra divinamente inspirada.

Temos, ademais, exemplos de personagens bíblicos que se dedicaram ao estudo, e cuja formação intelectual foi amplamente útil à história da redenção.

De acordo com o grande sermão de Estêvão, Moisés era “instruído em toda a ciência dos egípcios e […] poderoso em suas palavras e obras” (cf. At 7.22).

Daniel, judeu sábio e instruído, tornou-se um importante estadista do império medo-persa, destacando-se, ainda no império babilônico, pelo seu entendimento acima da média.

Lemos também que Esdras, o escriba, “tinha preparado o coração para buscar a Lei do SENHOR, e para a cumprir, e para ensinar em Israel os seus estatutos e os seus direitos” (cf. Ed 7.10).

Lucas, “o médico amado” (Cl 4.14), deixa claro, tanto em Atos dos Apóstolos como no Evangelho que leva seu nome, que ali estava um homem preparado para fazer investigações acuradas de provas.

O apóstolo Paulo, homem de três mundos (hebreu, romano e grego), deu excelente contribuição à pregação do Evangelho com seu conhecimento vasto, não só do que chamamos de “Antigo Testamento”, mas do repertório cultural de seu tempo, incluindo poesia, filosofia e noções de direito. Como sabemos, o trabalho intelectual de Paulo foi extremamente útil à defesa da fé e à formulação da doutrina cristã. Ele foi criado “aos pés de Gamaliel”, mestre prestigiado em sua pátria (cf. At 5.34; 22.3).

Vale recordar que todos esses personagens foram criados e forjados pelo próprio Deus, que, em Seus desígnios inescrutáveis, determinou o modo e a finalidade pela qual os talentos deles seriam empregados. Deus não Se surpreende, não recorre a planos secundários nem precisa de absolutamente nada. Se tais personagens fizeram algo positivo e estavam preparados para tal desiderato, tudo já estava determinado pelo Criador e Senhor do universo.

Podemos lembrar, ainda, que a existência do dom de mestre é ensinada em Ef 4.11, e Tiago, ao exortar os não-mestres à humildade quanto à doutrina, reconhece, ipso facto, o lugar do mestre vocacionado.

Na história da Igreja, grandes controvérsias foram debatidas, em concílios, por homens devidamente instruídos, e obras de elevada importância teológica foram escritas por figuras de intelectualidade reconhecida, a exemplo de Tertuliano, Orígenes, Jerônimo, Eusébio de Cesareia e Agostinho de Hipona.

É mesmo curioso que algumas certezas de fé bastante assentadas em tantos corações tenham sido objeto de polêmicas duramente travadas pelos melhores gênios da Antiguidade, enquanto hoje são dadas como evidentemente defensáveis e quase instintivas. Então, um crente simplório e ao mesmo tempo arrogante pode bradar contra o estudo como se pudesse dispensá-lo para a compreensão da Bíblia, sem desconfiar de que tudo o que ele sabe é fruto do estudo dos mestres que despreza.

O crente estudioso pode ser, quem sabe, um vocacionado ao Santo Ministério e/ou à carreira teológica. Ele deve ser incentivado. Talvez seja um crente desejoso de aprender mais de Deus para melhor servi-lo, o que, da mesma forma, deve ser estimulado pelos líderes da igreja local.

Considerando que toda profissão lícita constitui uma vocação divina, o crente estudioso deve realmente buscar formação especializada na hipótese de a carreira por ele escolhida exigir preparo intelectualmente qualificado. Se a Igreja pretende influenciar a sociedade, terá de se preparar para ocupar espaços na imprensa, no mundo acadêmico, na produção cultural, na literatura e nos altos escalões do poder. E, como é notório, algumas posições da sociedade são acessíveis somente por meio do estudo sistemático, intenso e progressivo.

Por fim, minha esperança é de que possamos ter uma visão bíblica acerca do estudo. No que toca especificamente à seara ministerial e eclesiástica, muitas dúvidas doutrinárias, éticas e teológicas poderão ser afastadas a partir de um estudo honesto, e muita energia poderá ser economizada se tivermos o interesse de aprender com os que se gastaram no exame cuidadoso das Escrituras.

Ministro do Evangelho (ofício de evangelista), da Assembleia de Deus em Salvador/BA. Co-pastor da sede da Assembleia de Deus em Salvador. Foi membro do Conselho de Educação e Cultura da Convenção Fraternal dos Ministros das Igrejas Evangélicas Assembleia de Deus no Estado da Bahia, antes de se filiar à CEADEB (Convenção Estadual das Assembleias de Deus na Bahia). Bacharel em Direito.

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