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estudos bíblicos

Deus e o “espírito mentiroso” para enganar Acabe

As implicações morais são óbvias e o fato desconcertante tem feito exatamente isto ao longo das eras: desconcertado muitos intérpretes.

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Rei Acabe da Record TV. (Foto: Edu Moraes/Record TV)

Um texto que sempre me chamou a atenção é o de 2 Reis, cap. 22. Neste texto, que mostra a aliança entre os reis de Judá (Josáfá) e Israel (Acabe) contra os sírios, afim de tomarem a cidade de Ramote-Gileade de volta dos domínios da Síria.

Sabemos, pelo relato bíblico, que Acabe, rei de Israel (neste caso, as 10 tribos que compunham o “Reino do Norte”, no período dos reinos divididos, que foi de aprox. de 930 a.C. a 539 a.C. Judá e Benjamim compunham o “Reino do Sul” neste período), mau, idólatra e sanguinário, convocou 400 profetas para que profetizassem se ele e o rei de Judá sairiam vitoriosos.

Com a anuência daqueles profetas estranhos, estranhou também Josafá, o piedoso rei de Judá, que, talvez por causa do fortalecimento de uma aliança com o Norte, aceitara ir à peleja com o ímpio Acabe. Até aí, só as intrigas políticas.

Contudo, a partir do versículo 7, do capítulo 22, ficamos sabendo que Josafá requer alguém, algum “profeta do Senhor Deus” que profetizasse se era ou não para que ambos os reis fossem à peleja. Acabe se lembra de um profeta de Deus “que sobrara”, Micaías, que estava preso porque “sempre profetiza o que é mal” a Acabe, segundo suas próprias palavras. Micaías é chamado e orientado a profetizar a vitória na guerra, mas, uma vez pressionado por Acabe, que estranhou o profeta profetizar “algo bom”, relata um das visões mais extraordinárias relatadas na Bíblia, que é a seguinte:

Então, disse ele: Vi todo o Israel disperso pelos montes, como ovelhas que não têm pastor; e disse o SENHOR: Estes não têm dono; torne cada um em paz para a sua casa. Então, o rei de Israel disse a Josafá: Não te disse eu que ele não profetiza a meu respeito o que é bom, mas somente o que é mau? Micaías prosseguiu: Ouve, pois, a palavra do SENHOR: Vi o SENHOR assentado no seu trono, e todo o exército do céu estava junto a ele, à sua direita e à sua esquerda. Perguntou o SENHOR: Quem enganará a Acabe, para que suba e caia em Ramote-Gileade? Um dizia desta maneira, e outro, de outra. Então, saiu um espírito, e se apresentou diante do SENHOR, e disse: Eu o enganarei. Perguntou-lhe o SENHOR: Com quê? Respondeu ele: Sairei e serei espírito mentiroso na boca de todos os seus profetas. Disse o SENHOR: Tu o enganarás e ainda prevalecerás; sai e faze-o assim. Eis que o SENHOR pôs o espírito mentiroso na boca de todos estes teus profetas e o SENHOR falou o que é mau contra ti”, 1 Rs. 22:17-23.

É claro que o texto se revela surpreendente de imediato por seu conteúdo. Primeiramente, sabe-se de uma “reunião secreta” nos céus, na qual é decidido “quem enganará Acabe, para que caia em Ramote-Gileade”. Até aí tudo bem, se não fosse a forma como se daria a queda de Acabe: ao que parece, Deus não somente permite “um espírito da mentira”, como o encaminha, “Tu o enganarás e ainda prevalecerás; sai e faze-o assim”.

As implicações morais são óbvias e o fato desconcertante tem feito exatamente isto ao longo das eras: desconcertado muitos intérpretes; tendo alguns até apelado às minúcias da Crítica Textual, na tentativa de suavizar moralmente o que parece ser uma contradição enorme com outros textos, que afirmam que “Deus não tenta” ninguém. De fato, não tenta. E por que Deus permitiu que tal espírito enganasse Acabe, e mais ainda, por que o enviou, pessoalmente, afim de que Acabe fosse enganado e caísse? Wittgenstein, filósofo analítico britânico, tem uma frase que é uma máxima para quaisquer áreas: “Do que não se pode falar, deve-se calar”.

E vários intérpretes bíblicos têm feito exatamente isto, calado, ou no máximo apelado a um aparato técnico-linguístico e histórico indisponível à maioria da população, fazendo-a pensar que praticamente tudo na Bíblia, e especialmente os textos que relatam revelações, profecias, alegorias, símbolos e coisas do gênero, são praticamente impossíveis de serem interpretados. Discordo disto.

A Bíblia é um livro escrito para o Homem, não para o “teólogo”. Apesar de aparatos histórico-linguísticos serem sempre bem-vindos quando a questão é a interpretação de textos mais complicados, não se pode deduzir que só através dos tais se pode ter uma interpretação correta, posto que, asseguro-lhe, prezado internauta, nenhuma acrobacia hermenêutica ou exegética técnico-linguística poderá resolver a questão envolvida em um texto como esse, de 1 Reis 22, nos moldes humanos, posto que o texto diz o que diz e, como muitos sabem, a regra áurea da Hermenêutica é “descobrir o que o autor quis dizer com o que disse” (Lund).

A hermenêutica requer algo mais do que o importantíssimo aparato histórico-léxico-cultual de que devemos dispor para a correta interpretação de textos. É necessário que aprendamos a olhar o todo do texto, suas nuances, aquilo que é crucial e pareça sumido, embora esteja aparente; sim, porque é nos detalhes que está toda a diferença! E é esta a minha proposta nesta série de artigos intitulados “Interpretando Textos Bíblicos Difíceis”.

A pretensão aqui não é revela “a” interpretação, mas, mais que isso, demonstrar o quão importante é tentarmos ver o todo do texto, aliando ferramentas exegéticas mais sofisticadas, quando as mesmas se fizerem necessárias, à capacidade de apreendermos o texto como um todo, não apenas o significado semântico de palavras e as suas ligações gramaticais, as quais não nos serviriam de absolutamente nada sem aquela capacidade de apreensão.

Aqueles que não param de pensar nas implicações do texto em questão, de 1 Reis 22, devem estar pensando como é possível sairmos dessa “sinuca de bico” teológica. Pode um Deus santo, justo e perfeito permitir e enviar um “espírito de mentira” para enganar um homem, um simples mortal? Bem, primeiramente, a “reunião celestial” entre Deus e os espíritos não foi tão secreta assim, pois eu e você, prezado leitor, estamos falando sobre ela agora mesmo. O que nos passa despercebido é o fato de o profeta Micaías tê-la presenciado espiritualmente.

Ele o afirma e, ao que tudo indica – isto não posso afirmar com certeza -, parece-me que apenas Deus sabia que Micaías estava vendo tudo, porque Deus bem sabia que o profeta seria chamado por Acabe, o qual não estaria só, mas acompanhado de outro rei, Josafá, e entre todos os mais importantes (provavelmente) de ambos os reinos, Israel e Judá, o que serviria de um testemunho tremendo para ambas as nações.

Deus só permitiu aquele “espírito da mentira” para, na hora exata, diante de todos, o seu próprio servo afirmar que os que profetizavam a vitória do rei Acabe falavam sob a influência de um espírito mentiroso e, daquele momento em diante, Acabe teria uma escolha: mediante do testemunho de Micaías, decidiria se à guerra ou, pela última vez, obedecia a Deus. Surpreendentemente, Acabe rejeita a profecia de Micaías e, mais surpreendentemente ainda, Josafá, o bom e temente rei de Judá, também! Terrível escolha!

O desenrolar da história é previsível: Acabe é mortalmente ferido; Judá e Israel fogem de diante dos sírios; Josafá volta a Judá para, depois, ter de ajustar com Deus as consequências de ter ido à guerra com aquele rei ímpio e idólatra, a despeito do conselho do profeta do Senhor, e aquela empreitada de guerra se mostra uma catástrofe para os reinos do Norte e do Sul. Logo após ter profetizado para Acabe e ter revelado o destino de Israel naquela peleja, Micaías diz o seguinte, em alto e bom som: “Ouvi isto, vós, todos os povos!” (vs. 28).

Obviamente, ele se referia imediatamente a Israel e Judá, nações ali representadas por Acabe e os seus, e Josafá e o os seus. Seu grito, que ficaria eternizado nas páginas das Sagradas Escrituras, ecoou e ecoa a outros povos, outras línguas, outras nações, afim de que todos leiam e “ouçam” o testemunho firme e vívido do profeta, que “grita” naquelas palavras o quanto Deus é perfeito e justo, nunca permitindo que ninguém – rico ou pobre, rei ou vassalo, homem ou mulher, livre ou escravo – viva ou morra em vão.

Deus seja louvado!

Bacharel em Teologia e Filosofia. Pós-graduado em Gestão EaD e Teologia Bíblica. Mestre e Doutorando em Filosofia pela UFPE. Doutor em Teologia pela FATEFAMA. Diretor-presidente do IALTH -Instituto Aliança de Linguística, Teologia e Humanidades. Pastor da IEVCA - Igreja Evangélica Aliança. Casado com Patrícia, com quem tem uma filha, Daniela.

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