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opinião

A trajetória de um teólogo liberal

Membro comum de uma igreja conservadora da doutrina, até que o ressentimento encontrou lugar em seu coração.

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Bíblia velha. (Foto: Dave Phillips / Unsplash)

Quem vê hoje o “pastor” Altivo Senbase defendendo casamento gay, aborto, diversidade sexual e outras pautas da esquerda não tem ideia de como tudo começou. Ele era um membro comum de uma igreja conservadora da doutrina, até que o ressentimento encontrou lugar em seu coração. Ordenado pastor, levou consigo a sementinha do mal, embora parecesse ortodoxo.

O problema de Senbase revelava-se, a bons entendedores, por manifestações de espírito crítico, questionamento acerbo e suspeitas infundadas, tudo escondido sob uma capa de depositário da “identidade” da igreja. Falava contra “o sistema”, do qual sempre dependeu, no qual sempre se beneficiou. Talentoso na arte de falar, foi galgando espaços na instituição, onde podia escrever livros, dar aulas, ministrar sermões e influenciar pessoas.

Engana-se quem pensa que a sementinha do mal apareceu primeiro como uma dúvida teológica no coração do Dr. Senbase. Na verdade, o que brotou antes foi mesmo o ressentimento. Ele tinha uma tristeza amarga no peito por causa do prestígio de outras confissões de fé protestantes, enquanto, em sua concepção, os teólogos de sua igreja não tinham a aceitação merecida. Atribuía esse dilema a causas econômicas, sociais e políticas, imaginando que na raiz de tudo se achava certamente algum interesse pelo poder.

Bem por isso, Dr. Senbase detestava a simples existência de divergências doutrinário-teológicas entre diferentes confissões de fé protestantes. Ela não entendia isso. Como conciliar opiniões tão díspares sobre a dinâmica da salvação, o poder de Deus, o tempo do fim? Sua resposta sempre girava em torno de questões políticas e, enfim, do vil metal.

Um dia (infeliz), Senbase pensou: “E se as doutrinas oficiais não passarem de produto de concílios politicamente orientados?” Desse modo, suas reflexões migraram dos concílios eclesiásticos para doutrinas cristãs, e das doutrinas cristãs para a teologia sistemática. Não demorou para que ele começasse a questionar o cânon: “Se o conjunto de Livros Sagrados foi definido em concílios, quem garante que isto não se deu por motivos políticos?” Este era o pensamento aparentemente sofisticado do Dr. Senbase.

Nessa esteira, Altivo Senbase iniciou um exercício estranho, de selecionar um cânon de acordo com critérios pessoais. Bem, os membros dos concílios devem ter errado, mas Senbase com certeza chegaria a bom termo…

O exercício “canônico” de Altivo Senbase operou-se mais ou menos assim: começando pelo Novo Testamento, escolheu, dos Evangelhos, as palavras de Jesus; de Atos dos Apóstolos, aproveitou apenas os discursos que entendeu por movidos pelo Espírito Santo; das Epístolas, ele ficou somente com as orientações classificadas como “doutrinárias”, “teológicas” e “devocionais”, deixando de lado o que entendeu por opiniões humanas e culturalmente condicionadas; do Apocalipse aproveitou poucas passagens, pois tudo lhe parecia demasiado simbólico, e representava mais a forma como João entendera a experiência do que a revelação em si.

Empolgado, e avançando ao Antigo Testamento, o Dr. Senbase retirou todas as genealogias; todas as descrições relativas ao Tabernáculo e ao Templo; todo o relato sobre a reconstrução dos muros de Jerusalém; todas as histórias por ele classificadas como secundárias e não espirituais; todas as informações cronológicas, geográficas ou culturais; todos os Salmos que enxergou como simples “desabafos”; todos os cânticos, falas e comentários que entendeu como reações à revelação divina (não como registro inspirado da revelação); todos os provérbios supostamente carregados de preconceitos da época e terríveis contradições.

Depois de um tempo dedicado a esse cânon peculiar, Altivo Senbase dividiu a Bíblia entre palavras de Deus e palavras sobre Deus. Para ele, assim como a teologia é um discurso sobre Deus, há na Escritura muitos textos que devem ser tidos como palavras sobre Deus, e nisso se encaixariam as muitas considerações feitas por sábios, cronistas, profetas e apóstolos. Palavras de Deus mesmo seriam, para ele, os Dez Mandamentos; alguns discursos divinos registrados por Moisés; os sermões e declarações de Jesus; alguns discursos inspirados, proferidos pelos apóstolos e outras figuras neotestamentárias; algumas orientações doutrinárias… Mas, mesmo assim, tudo carregaria dentro de si o peso da intervenção humana, consistente no registro e narrativa da experiência com o Deus que Se revela.

A essa altura, Altivo deixara de subscrever a doutrina da inspiração verbal e plenária, e a Escritura, em sua visão, não seria inerrante. “Deus não erra”, ele admite, para, no entanto, acrescentar: “Mas os homens erram em sua interpretação, e isso inclui os autores bíblicos”. Tudo, enfim, para Altivo se torna interpretação, e o pleno conhecimento de Deus passa a ser algo impossível. Sua “hermenêutica” deixa de ser uma teoria da interpretação para ser uma teoria sobre o conhecimento (ou sobre a impossibilidade do conhecimento pleno).

Foi nessa linha que a apologética deixou de ter qualquer valor para o Dr. Senbase, que a detesta com todo o seu ser. Se não há possibilidade de conhecimento pleno das coisas de Deus, como garantir que a “minha doutrina” está correta? Senbase gosta de dizer que a Bíblia não é um almanaque, uma caixinha de saberes estáticos. Ele gosta mesmo é da abertura de uma mente disposta a duvidar, e isso encanta os seus fãs.

Dr. Senbase concluiu que as Escrituras foram editadas no curso dos séculos conforme as ideias, crenças, costumes, valores, princípios e interpretações dos judeus e da Igreja. Cada Livro teria sido estruturado sob camadas de tradições e interpolações, sendo mesmo inatingível a fonte primária de qualquer Texto Sagrado (ele até tentou descobrir quais os textos autênticos, depois passou a procurar os textos essenciais, e, em seguida, se contentou com os textos relevantes).

Do cânon pessoal para a ideologia “progressista” não houve passos muito largos, dado que a ética cristã, na concepção de Altivo, veio a ser considerada um conjunto de crenças e preconceitos forjados pela situação histórica e social.

E o que fazer de todas aquelas ideias de Paulo sobre submissão cristã da mulher ao marido, princípio de autoridade, castidade, sexualidade e casamento monogâmico? Basta dizer que Paulo era um judeu machista, misógino, reacionário e racionalista, que precisaria ter aprendido mais com o médico Lucas, autor de uma obra supostamente mais aberta, universal, empoderada e inclusiva…

Mateus, Marcos, João, Pedro, Tiago, Judas e o autor de Hebreus também precisariam, na visão de Altivo, ser revisitados à luz dessa premissa, a saber, de que muito do que escreveram foi fruto de seus pressupostos, porque nem mesmo eles seriam uma “tábula rasa” em sua interpretação das Escrituras Judaicas, da realidade à sua volta e das revelações que receberam de Deus. Dessa forma, por não serem tábula rasa, seus Livros também precisariam ser submetidos a uma interpretação centrada no leitor, e não na intenção do autor…  E quem discordar disso, pensa Altivo, é, em alguma medida, porque não leu o suficiente.

Tamanho foi o seu acervo de elevadas descobertas, que Altivo Senbase se achou totalmente contaminado pelas toxinas matadoras da incredulidade liberal-esquerdista. Sua Bíblia estava ali, pronta para ser lida, pronta para produzir edificação, mas de suas páginas o professor liberal extraía somente o que lhe permitiam os óculos míopes e embaçados da falta de fé. Pensando ver agora de forma cristalina, ele se perdeu em seus pressupostos de leitor, sufocado pelas sucessivas camadas de escritura que a tradição eclesiástica teria adicionado à verdadeira Palavra de Deus.

Pobre Altivo. Se ele reconhecesse agora que também os seus pressupostos precisam ser moldados conforme o poder de Deus… Se ele entendesse que a Bíblia é a Palavra divinamente inspirada, inerrante, infalível, autoritativa, suficiente, absoluta e eterna… Se ele se apercebesse do mal que o cerca… Se ele admitisse que não é possível compreender as coisas espirituais baseando-se em pressupostos carnais… Mas Altivo não ouve conselhos de conservadores – ele prefere o vinagre disfarçado de vinho novo.

*História fictícia, fruto das divagações fundamentalistas deste que vos escreve.

Ministro do Evangelho (ofício de evangelista), da Assembleia de Deus em Salvador/BA. Co-pastor da sede da Assembleia de Deus em Salvador. Foi membro do Conselho de Educação e Cultura da Convenção Fraternal dos Ministros das Igrejas Evangélicas Assembleia de Deus no Estado da Bahia, antes de se filiar à CEADEB (Convenção Estadual das Assembleias de Deus na Bahia). Bacharel em Direito.

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