estudos bíblicos

A mulher de Jó mandou mesmo que ele amaldiçoasse a Deus?

Uma análise bíblica e devocional sobre Jó 2:9.

em

The Patient Job (Gerard Seghers)

Se existe uma figura icônica do sofrimento na Bíblia esta é Jó. É importante fazer uma distinção entre o tempo em que Jó viveu e o tempo quando o livro de Jó foi escrito.

Jó aparentemente deve ter vivido durante o tempo dos patriarcas, possivelmente próximo à época de Abraão. O livro de Jó é considerado o livro mais antigo da Bíblia.

É possível chegar a esta conclusão pelas seguintes informações:

  • Não se observa no livro referências alusivas à lei de Moisés, bem como suas instituições. Esta condição poderia ser considerada incomum se Jó realmente vivesse em um tempo pós Moisés.
  • Jó aparece apresentando sacrifícios em favor de sua família, uma atividade pertinente aos patriarcas, quando o sacerdócio ainda não havia sido estabelecido, análogo aos que eram praticados sob a égide da Lei.
  • A longevidade de Jó está em concordância ao tempo dos Patriarcas.

Segundo alguns estudiosos Jó deve ter vivido em uma época anterior ao pai Abraão, algo entre os séculos XXV a XXIII a.C. Ele tinha provavelmente 200 anos quando faleceu.

“Depois de todos esses eventos, Jó ainda viveu 140 anos; viu seus filhos e os descendentes deles até a quarta geração. E então morreu Jó, realizado e em idade muito avançada.” (Jó 42:16-17)

Jó foi provado em quatro aspectos:

  • Quando perdeu seus bens, seus empregados e seus filhos;
  • Quando perdeu sua saúde;
  • Quando orientado a “amaldiçoar a Deus” por sua esposa e
  • Enfrentando a acusação de seus “amigos”.

Jó é apresentado como um homem de destacado caráter espiritual. Ele é descrito assim: “Aquele que era inculpável, reto, temia a Deus e se apartava do mal.”

Jó oferecia regularmente sacrifícios por seus filhos, para o caso de algum deles ter “amaldiçoado a Deus.”

Sucedia, pois, que, decorrido o turno de dias de seus banquetes, enviava Jó, e os santificava, e se levantava de madrugada, e oferecia holocaustos segundo o número de todos eles; porque dizia Jó: Porventura pecaram meus filhos, e amaldiçoaram a Deus no seu coração. Assim fazia Jó continuamente. (Jó 1:5)

A ideia de “amaldiçoaram” (blasfêmia ou desafio a Deus) é uma interpretação um tanto superlativa para o que verdadeiramente a frase quer dizer na língua original hebraica.

A significação literal do termo se traduz como a bênção que acompanhava a partida de um visitante. O sentido é visto em Josué 22:6:

“Assim Josué os abençoou, e despediu-os; e foram-se às suas tendas”.

וַֽיְבָרְכֵ֖ם יְהֹושֻׁ֑עַ וַֽיְשַׁלְּחֵ֔ם וַיֵּלְכ֖וּ אֶל־אָהֳלֵיהֶֽם׃

וַֽיְבָרְכֵ֖ם  (Waibareken = então abençoou)

A preocupação de Jó residia em que seus filhos pudessem vir a se apartar do Senhor no íntimo de seus corações, isto é, esquecerem-se de Deus e de Sua Santa presença em suas vidas diárias.

Que tipo de enfermidade assolou Jó?

Sugere-se que a doença que se abateu sobre Jó foi uma forma super severa de lepra, que também era classificada como elefantíase-dos-gregos. Algumas vezes também é denominada como lepra negra, pelo fato de tornar a cútis enegrecida.

Com a permissão de Deus, Satanás fustigou Jó com uma enfermidade impossível de identificar. Seja qual fosse a classificação dessa moléstia, os sintomas eram horríveis:

  • Coceira forte (Jó 2:8)
  • Insônia (Jó 3:13)
  • Feridas e crostas supurantes (Jó 2:7)
  • Pesadelos (Jó 7:13, 14)
  • Mau hálito (Jó 19:17)
  • Perda de peso (Jó 19:20)
  • Calafrios e febre (Jó 21:6)
  • Diarreia (Jó 30:27)
  • Pele enegrecida (Jó 30:30).

A “cinza” mencionada em 2:8 é uma alusão ao lugar do lado de fora da cidade onde estrume e outros detritos seriam lançados e periodicamente queimados. É bem provável que Jó tenha escolhido seu lugar ali porque sua doença tornava-o indesejável na aldeia.

“E Jó tomou um caco para se raspar com ele; e estava assentado no meio da cinza.” (Jó 2:8)

A mulher e a sua orientação a amaldiçoar a Deus

“Então sua mulher lhe disse: Ainda reténs a tua sinceridade? Amaldiçoa a Deus, e morre.” (Jó 2.9 ACF)

Uma vez mais, nos utilizando das ferramentas da hermenêutica, façamos algumas perguntas:

  1. Foi isso que ela disse mesmo?
  2. Como está escrita essa frase no texto hebraico bíblico original?
  3. Qual a intenção por trás dessa afirmação?

Vamos ao texto em hebraico e transliterado:

A expressão:

וַתֹּ֤אמֶר לֹו֙ אִשְׁתֹּ֔ו עֹדְךָ֖ מַחֲזִ֣יק בְּתֻמָּתֶ֑ךָ בָּרֵ֥ךְ אֱלֹהִ֖ים וָמֻֽת

“Então, sua mulher lhe disse: ainda reténs a tua sinceridade? ABENÇOA a Deus e morre.”  (Jó 2.9) (Ela manda seu marido abençoar e não amaldiçoar)

Segundo o Dicionário Strong a palavra בָּרֵ֥ךְ pode significar:

Abençoe, com o significado antitético maldição (Thes) da saudação em partir, dizendo adeus a, despedir-se; mas sim uma bênção exagerada.

A expressão: בָּרֵ֥ךְ (barekh) significa abençoa e não amaldiçoa. E por que nas mais variadas traduções os termos estão trocados?

Observemos algumas suposições:

Na cultura da época era improvável que o menor amaldiçoasse ou induzisse o maior a blasfemar. A mulher de Jó, não ousaria induzir seu marido a uma atitude tão vil, a saber que na cultura da época o homem era superior à mulher.

Outro detalhe interessante é que a ironia era uma linguagem normal. A esposa de Jó poderia ter dito “abençoa”, outrossim com tom irônico. (Técnica antitética = que constitui ou encerra antítese; antagônico, contrário.)

Outra possível sugestão diz que os escribas judeus, ao fazerem a cópia do livro de Jó (pois não se tem mais o original), podem ter trocado o termo “amaldiçoa” por “abençoa” visto que, pela reverência que tinham a Adonay, não poderiam transcrever o real sentimento da mulher de Jó falando contra o Eterno. Aplicamos aqui o eufemismo, ou seja, substituição de um termo rude por um mais brando.

Pelo contexto, apesar da palavra usada ser “abençoa (bendiga, exalta)”, o sentimento era de induzir Jó a falar contra o Eterno Deus. Era como se ela dissesse:

“Pra mim, basta! Não tenho mais razão para viver. Perdemos tudo, inclusive nossos filhos. Agora é com você. Deus não foi justo conosco! Diga adeus, bendiga a Deus e morra!”.

O que se depreende do texto é que a esposa de Jó não gozava dos mesmos adjetivos espirituais que o marido. Não se deve ser muito insensível com esta mulher, uma vez que estava psicologicamente abalada por uma sequência de traumas que se abateu sobre sua família.

Deve-se racionalizar que o conselho da esposa de Jó seja uma conclusão que chegara associando o sofrimento do esposo como causa de pecado, como seus amigos também o acusaram. Ela entende que o grande sofrimento de Jó só pode ter sido causado por um grande pecado que o separou de Deus.

Sendo assim “Amaldiçoar a Deus” não tornaria sua vida relacional com o Eterno pior, mas ao contrário, traria um grande alívio para o tormento e sofrimento temporal.

Mas o final da história de Jó é uma demonstração de que a confiança no Senhor é a certeza de mudanças e transformações. Jó revela que antes dos episódios de dor de sua vida seu conhecimento de Deus era terceirizado, entretanto, agora, ele podia contemplar a Glória do Pai com seus próprios olhos.

“Com o ouvir dos meus ouvidos ouvi, mas agora te vêem os meus olhos.” (Jó 42:5)

O dia da revelação de Deus será quando o diagnóstico médico for contrário a todas as expectativas.

O dia da manifestação de Deus em nossa vida será aquele em que todo mundo virar as costas para nós, inclusive a esposa ou o marido.

O dia que será o divisor de águas em nossa vida espiritual será, não no dia da festa e celebração, mas no dia do luto.

O dia que nossos olhos se abrirão para Deus será quando todos disserem estar certos e nós errados
Será naquele dia quando nosso ministério for desacreditado.

Vai ser no dia em que nos derem o cálice amargo de fel e termos que sorvê-lo até a última gota.

Mas alegremo-nos!

“Porque eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim se levantará sobre a terra.” (Jó 19:25)

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